Por Fábio Joly, Universidade Federal de Ouro Preto.
Em poucos momentos é possível vislumbrar, de uma forma tão direta e acentuada, o impacto político e público da escravidão na cidade de Roma quanto na descrição, pelo senador e historiador Cornélio Tácito (56-117 d.C.), de um episódio que ocorreu à época do imperador Nero.
Em 61 d.C., Pedânio Secundo, prefeito da cidade de Roma, foi morto em casa por um de seus escravos (Ann.14.42-45). Ocorreu então um vívido debate no Senado e uma significativa mobilização da plebe, pois, a se aplicar uma lei punitiva (o senatus consultum Silanianum), todos os escravos que se encontravam sob o mesmo teto no momento do crime (no caso, quatrocentos!), deveriam ser torturados e executados. Embora tenha prevalecido a aplicação da pena –com o aval de Nero –, chama a atenção a reação da plebe de Roma, que se armou com pedras e paus para evitar o suplício a ponto de ser contida por soldados. Uma manifestação que indica o quanto provavelmente os escravos de Pedânio estavam imersos no tecido social da cidade, compartilhando o espaço urbano com pessoas do povo, por meio de relações de trabalho e amizade.
Embora o episódio seja retratado segundo os interesses de um senador como Tácito (e daí sua ênfase apenas nos argumentos favoráveis à execução dos escravos), ele deixa entrever a integração social dos escravos para além das relações com seus senhores, em comunidades mais amplas do que aquelas domésticas. Ou seja, permite pensar a atuação dos escravos no quadro das relações sociais entre os habitantes da cidade, sejam eles cidadãos ou não cidadãos.
Como os senhores de escravos reagiam a essa inserção de seus dependentes em círculos sociais fora de seu alcance? Uma expressão dessa preocupação pode ser percebida nos recorrentes paralelos literários entre a domus e a res publica no intuito de demonstrar que a esfera doméstica bastaria aos escravos como espaço de vivência.
Temos na obra do filósofo Sêneca (morto em 65 d.C.), que foi aliás tutor de Nero no início de seu governo, um exemplo claro dessa lógica. Suas reflexões sobre a escravidão fornecem-nos uma via de entrada no modo como, em Roma, a elite buscava administrar as ansiedades produzidas pelo grande número de escravos em suas casas.
Embora não critique a legitimidade da escravidão, Sêneca reconhece que a instituição é fundada na violência, a que todos estão sujeitos. A escravidão é produto da Fortuna, que “repartiu mal os bens comuns e deu a um o domínio sobre o outro, embora nascidos com igual direito” (Ad Marc. 20.2). Na carta 47 a Lucílio, também pondera que “esse homem que chamas teu escravo nasceu da mesma semente que tu, goza do mesmo céu, respira, vive e morre tal como tu. Tanto direito tens tu a olhá-lo como homem livre como ele a olhar-te como escravo” (Ep. 47.10). Portanto, o que unifica os homens é a alma, a despeito das distinções jurídicas e sociais. Em outra carta, escreve que a “alma tanto pode estar num cavaleiro romano, como num liberto, como num escravo. O que é afinal um cavaleiro romano ou um liberto ou um escravo? Nomes nascidos da ambição e da injustiça” (Ep. 31.11). Porém, essa argumentação não significa necessariamente que o filósofo valorize de fato o escravo (ou mesmo o liberto) como membro de uma comunidade mais ampla do que aquela doméstica, centrada no senhor. Em seu tratado sobre os benefícios, defende que “o escravo pode ser justo, pode ser forte, pode ter uma grande alma. Portanto, pode conferir um benefício, o que é sinal de virtude” (Ben. 3.18.3). Mas quais são os benefícios que os escravos podem dar a seus senhores? Os exemplos que Sêneca enumera – e encenados durante a guerra civil de finais da República e no Principado, por conta das delações ao imperador (que Sêneca também compara a um estado de guerra civil) – têm um ponto comum: trata-se sobretudo da preservação da vida do senhor, mesmo que isso acarrete a morte do escravo. Aliás, não por acaso, nas Cartas, os escravos são mostrados, como exemplos de conduta, justamente quando dão fim à própria vida, realizando a mostra suprema de liberdade.
Sêneca não postula assim qualquer tratamento humanitário dos escravos como um fim em si mesmo, como um passo para uma vida mais virtuosa pelos senhores. A preocupação primordial é propor um modelo de controle dos escravos que não os torne inimigos do senhor, colocando sua vida em risco, como aconteceu no caso de Pedânio Secundo. Na carta 47, propõe precisamente isso para contornar os efeitos negativos da organização doméstica da escravaria, decorrentes da hierarquização e especialização do trabalho que rebaixa e constrange os escravos a meros utensílios do senhor para satisfação de seus desejos. Em contrapartida, sugere que o senhor converse com seus escravos, compartilhe a mesa com eles, e siga o costume dos antepassados que instituíram um dia festivo em que se atribuía aos escravos “cargos honoríficos na administração da casa ou na distribuição da justiça, fazendo assim da casa uma república em ponto pequeno” (Ep. 47.14).
Metáfora semelhante é empregada por Columella, contemporâneo de Sêneca, em seu tratado sobre agricultura, em que aconselha o proprietário de uma fazenda a zelar pelo cumprimento das ordens dadas aos escravos pois “isto é sempre observado nas cidades de bons costumes”, onde não bastam apenas boas leis, mas há que se ter seus guardiões (12.3.10-11). Igualmente, o senador Plínio, o Jovem (61-112 d.C.) escreveu que a “casa é uma pequena república” para os escravos e confere-lhes como que uma “cidadania” (Ep. 8.16.2). Nesse sentido, permitia que seus escravos fizessem como que testamentos e seguia as prescrições ali postas, mas tudo nos limites da casa (intra domum), faz questão de frisar.
Na leitura das fontes, deve-se atentar então para que essa ideologia senhorial, que projeta um isolamento dos escravos nos marcos da esfera doméstica, não seja tomada como um fato, impedindo-nos de colocar questões sobre a atuação dos escravos no espaço maior da cidade, contrariando o desejo dos senhores em reforçar o poder sobre eles.