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As Calendas de Janeiro e a cultura popular na Antiguidade Tardia

Atualizado: 20 de ago. de 2021

Por Lucy Grig, University of Edinburgh.


O mais conhecido festival de inverno no mundo antigo é, sem dúvida, a Saturnália, que era celebrada de 17 a 23 de dezembro. A Saturnália é famosa por sua alegria desenfreada e ruidosa, mas também por suas inversões carnavalescas: os senhores serviam seus escravos e os cidadãos vestiam a touca do liberto. Como o festival posterior do Carnaval, a Saturnália foi associada à sátira, às piadas e às ideias de licenciosidade. É claramente um festival que tem muito a oferecer aos interessados ​​na história vista de baixo e tem sido frequentemente estudado como tal. No entanto, ela não é o único festival de inverno que pode nos dizer sobre a cultura popular antiga. No Império Romano Tardio – na Antiguidade Tardia – foi um festival diferente, as Calendas de Janeiro, que parece ter capturado a imaginação popular.


Tradicionalmente, o festival das Calendas foi muito associado ao poder romano. Na cidade de Roma, ele marcava a inauguração dos novos magistrados do ano que se iniciava. Por todo o Império, o exército renovava seus votos de lealdade ao imperador e os soldados eram, por sua vez, recompensados ​​com um presente anual em dinheiro. Nas cidades do Mediterrâneo, conhecemos as procissões e corridas do circo promovidas pelas autoridades locais. Juntamente com esses eventos oficiais, no entanto, havia toda uma série de rituais e práticas, muitos dos quais conhecemos por meio da resposta hostil que eles provocaram da Igreja na Antiguidade Tardia, momento em que o cristianismo havia se tornado a religião oficial do Império Romano. Por todo o Império, nas grandes e pequenas cidades e até mesmo no campo, os bispos queixavam-se do comportamento de seus fiéis nessa época.


Do que exatamente eles reclamavam? Muito do comportamento associado às Calendas era precisamente o que esperaríamos de qualquer folia festiva: comer, beber, cantar, dançar e festejar estavam todos envolvidos, como seria de se esperar. Práticas rituais claramente associadas à ideia do ano novo foram atacadas como “supersticiosas” pelos clérigos: por exemplo, tanto na cidade quanto no campo, as pessoas preparavam mesas cheias de comida com o objetivo de garantir abundância no ano seguinte. Elas também trocavam presentes conhecidos como strenae – “presentes de boa sorte” (que podem ser comparados com os sigillaria da Saturnália), variando de frutas decoradas com lantejoulas até moedas de ouro. Esses presentes eram trocados – junto com saudações, conhecidas como vota – como parte de visitas de porta em porta, novamente tanto na cidade quanto no campo. São essas visitas que contêm os aspectos mais intrigantes do festival do ponto de vista da cultura popular antiga.


Os foliões de ano novo faziam suas visitas em vários tipos de fantasias. Eles podiam, por exemplo, pintar seus rostos – um disfarce de carnaval barato, fácil e persistente. Pior ainda do ponto de vista de seus opositores clericais, eles podiam tentar mudar sua essência. Tanto no Oriente como no Ocidente, o travestismo é uma queixa frequente – para o desgosto de nossas fontes, que consideravam essa prática antinatural e abominável. Embora normalmente nossos textos se refiram a homens que se vestiam como mulheres, também há menção a mulheres que se vestiam como homens. No Ocidente latino, porém, outra forma de vestir-se era ainda denunciada com maior frequência: vestir-se de animais, especialmente como cervos e gado. De novo, os clérigos reclamavam que isso era uma traição anormal da criação de Deus.


A tradição popular de se fantasiar como animais representada num manuscrito medieval (iluminura do "Roman d'Alexandre". MS Bodley 264, fol. 21v. Bodleian Libraries, University of Oxford).

Os foliões das Calendas, tendo sua verdadeira identidade muitas vezes escondida com segurança sob um disfarce, sentiam-se livres para se divertir – o que é claramente outro exemplo de licença festiva. Um testemunho clerical em particular, Astério, bispo de Amaseia na região do Mar Negro no final do século IV, reclama amargamente sobre o incômodo que esses foliões representavam. Ele alega que eles espancavam fazendeiros inocentes, entravam na cidade para o feriado e assediavam os próprios clérigos. Ele descreve como eles se reuniam em esquadrões para visitar as casas dos ricos – prestando atenção especial às casas dos políticos locais – para exigir presentes na forma de dinheiro vivo.


Além disso, Astério reclama que eram pessoas da mais baixa condição social que compunham essas gangues: atores – incluindo as mulheres! - e “mendigos comuns”. É claro que devemos entender que o bispo está tentando retratar esses foliões da forma mais negativa possível, a fim de dissuadir seus ouvintes mais respeitáveis ​​de participar da diversão. No entanto, ainda é possível tomar essas descrições como evidência da maneira pela qual os pobres e os marginalizados sociais faziam uso criativo da folia em uma tentativa tanto de melhorar sua situação, como de desabafar. Políticos corruptos ou ineptos – sobretudo em tempos de escassez de alimentos – eram particularmente propensos a sofrer, no mínimo, o assédio e esse aspecto político da folia não deve ser subestimado, tanto na Antiguidade Tardia, como hoje.


As Calendas de Janeiro foram um festival com notáveis elementos "de baixo", bem como "de cima". Ele fornecia uma fuga temporária das privações do inverno, uma oportunidade para desabafar. Também fornecia uma oportunidade para as pessoas ensaiarem uma mudança de identidade e – ao menos potencialmente – fazer uso do disfarce para melhorar sua condição material e para ajustar contas.


(Tradução de Julio Cesar Magalhães de Oliveira)


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