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Foto do escritorCyril Courrier

As favelas da Roma antiga: as palavras e as coisas

Atualizado: 4 de set. de 2021

Por Cyril Courrier (Aix-Marseille Université) e Jean-Pierre Guilhembet (Université Paris-Diderot-Université de Paris).


A imagem da cidade de Roma nas fontes antigas é ambígua. Augusto se gabava de tê-la transformado em um modelo de urbanidade, mas outras descrições permanecem muito negativas: uma cidade onde a pobreza reinava e vivia uma população de miseráveis ​​marginalizados e pobres. Para Horácio, Roma parecia ser inteiramente composta de lupanares e bares. Segundo Catulo, a salax taberna, uma das principais características da "Roma de baixo", era um mundo de deboche que, mesmo próximo do templo de Castor e Pólux, mal escondia atividades de prostituição. Mais frequentemente, Roma é descrita como um mundo de lustra, de lugares ruins. Como explicar esse quadro tão sombrio? Trata-se de uma realidade efetivamente vivida ou, acima de tudo, de estereótipos literários ou preconceitos sociais, formas de estigmatização e desprezo aristocrático da parte de autores que pertenciam aos estratos mais altos da sociedade?


Um ponto não é questionável. Roma era uma cidade muito densamente povoada: 400.000 habitantes a partir do final do século II. a.C.; 600 ou 700.000 em meados do século I. a.C.; provavelmente um milhão sob Augusto. É claro que essa concentração, única entre as cidades pré-industriais, não deve ser deixada de lado. Os antigos insistem na agitação e no tumulto da Vrbs, especialmente o poeta Marcial, nativo da Hispânia. E isso não é tudo: a confusão de ruas, maus cheiros, falta de higiene, crime e violência são, nos textos, o corolário dessa superpopulação e da pobreza generalizada de uma plebe descrita como desenraizada e confinada em habitações temporárias ou, para os sortudos, em residências coletivas, sem nenhuma manutenção, mas com aluguéis muito altos.


De fato, as massas deviam morar em prédios que as fontes às vezes chamam, mas muito mais raramente do que os estudos modernos sugerem, de insulae. Dois riscos principais e recorrentes parecem ter marcado sua existência: os colapsos, acelerados pelas inundações do Tibre, que enfraqueciam suas fundações, e os incêndios. O pequeno espaço entre dois edifícios, o uso massivo de madeira, o aquecimento por meio de fogareiros e a iluminação com lamparinas a azeite também favoreciam o número e a extensão dos incêndios.

Esses dados textuais são tão sombrios e quase apocalípticos que os historiadores modernos foram capazes de falar de um quadro "distópico", o oposto de uma utopia. Mas qual é a parte da historicidade aqui? Devemos tomar literalmente tudo o que é denunciado por Plauto, Petrônio, Sêneca, Marcial, Juvenal ou outros?


Reconstituição de um imóvel coletivo de qualidade, reproduzido com a gentil autorização da Université de Caen Passe-Normandie, Plan de Rome (França).

Alguns trabalhos, compilando e combinando citações, baseiam-se nessa imagem muito sombria e derivam dela consequências demográficas. Outros historiadores, como E. Lo Cascio, enfatizam, pelo contrário, que esses elementos se devem em grande parte ao clichê inerente aos gêneros literários dessas obras, comédias ou sátiras na forma de um mundo invertido. Toda essa retórica celebra uma vida saudável no campo, diante da dificuldade e imoralidade da vida urbana e exacerba as representações aristocráticas, desdenhosas e estereotipadas, do povo e de seus perigos.


A arqueologia lança mais luz sobre as realidades da habitação? Ao contrário do que se poderia pensar, ela não ajuda muito. A ocupação contínua do sítio de Roma só permitiu a escavação de alguns edifícios. Na escala de uma cidade de um milhão de habitantes, a amostra não é muito representativa, mas pode ser complementada pelos edifícios de Óstia, porto de Roma, cujo local, abandonado progressivamente no final da Antiguidade, nunca foi reocupado. A maioria está em um estado notável de preservação e dificilmente confirma a visão apocalíptica das fontes literárias. A generalização do opus caementicium como liga entre os tijolos possibilitou a construção de edifícios sólidos com pilares de pedra. Embora esses prédios em geral não possuíssem instalações urbanas esperadas (latrinas sistematicamente conectadas a esgotos públicos, cozinhas reais), eles integravam diferentes aspectos da vida dos residentes: uma fonte coletiva, conectada à rede de abastecimento, em um pátio central, ou em uma rua adjacente, atendiam as necessidades de água do bairro; as lojas ao redor do pátio ofereciam vários serviços locais; banhos, associações e pequenos santuários favoreciam as relações de vizinhança.


Reconstituição de uma rua da antiga cidade de Roma, com sua fonte e suas lojas no nível térreo dos imóveis; reproduzida com a gentil autorização da Université de Caen Passe-Normandie, Plan de Rome (França).

Os dados arqueológicos disponíveis estão, portanto, longe da visão pessimista da maioria dos textos e, antes, confirmam a descrição de Vitrúvio, arquiteto do início da época de Augusto: “Dada a importância da cidade e a extrema densidade da população (...) foi preciso (...) recorrer a construções em altura. Estes edifícios são erguidos com pilares de pedra, alvenaria com revestimento de tijolos, paredes com miolo de entulho (...). Assim, eles oferecem uma distribuição extremamente útil nas habitações [graças às quais] o povo romano encontra, sem dificuldade, excelente moradia” (Sobre a arquitetura, II, 8, 17).


Resta ver qual parte e quantos habitantes eram assim alojados: vários estudos recentes recordaram o caráter excepcional da megacidade romana em que uma parte da população (a plebs frumentaria), protegida pelas autoridades, vivia em condições favorecidas. A distribuição mensal e gratuita de trigo público permitiu aos beneficiários, graças ao poder de compra assim preservado, acessar uma dieta variada; o poder público garantia uma abundante água de qualidade, intervinha na manutenção das ruas e na evacuação dos resíduos... Mas essa plebe frumentária chegava a 320.000 homens adultos e 150.000 pelo menos sob o Império, aos quais se deve adicionar sua família. Se admitirmos uma possível aproximação entre as insulae agora conservadas e a existência de um corpo de cidadãos privilegiados, podemos deduzir que a capital do Império não foi invadida por construções precárias e formas de habitação temporária. Isso quer dizer que Roma era uma cidade sem favelas?


Se as insulae não correspondem ao habitat precário, é necessário pensar em premissas e em um vocabulário mais diversificado para localizar as habitações dos marginais. Nas áreas de necrópole, nos arredores da cidade, os monumentos, capelas e recintos funerários, em caso de desastres ou de forma estrutural, sem dúvida abrigavam uma parte da população, mas é necessário superestimá-la? O mesmo pode ser dito para as margens do Tibre das pontes, estruturas de aquedutos, rampas ou escadas de edifícios ou armazéns. Poderia o crescimento de pórticos e monumentos públicos permitir à população mais pobre montar abrigos improvisados? Não há nenhuma evidência conclusiva que nos permita identificar invasões desses espaços por moradias precárias. Mas como essas habitações quase não deixavam vestígios materiais, habitações modestas podem ser deduzidas sobretudo do vocabulário abertamente depreciativo das fontes literárias. Havia também acomodações que, sob vários nomes, permitiam a alguém habitar em Roma a preços razoáveis, com um aluguel pago dia a dia. Mas aqui, novamente, é preciso ter cuidado com a literatura, que, na maioria dos casos, apresenta esses alojamentos de uma maneira cruel. Quando um aristocrata viajava, ele se hospedava apenas nas suas propriedades ou na casa de um amigo. Afinal, todas as formas de hotelaria tinham má reputação!


As mesmas nuances também valem para os bairros. Subura tornou-se, na literatura antiga, sinônimo de lugar perigoso, bairro depravado, mas a realidade é mais complexa: em todas as épocas o bairro abrigou residências aristocráticas! Sem negar certos inconvenientes, estamos lidando aqui, como em outros lugares, com um bairro estigmatizado, não com uma favela. Além disso, o Velabro, a zona do Circo Máximo e o Trastevere, todos bairros muito povoados, não desfrutavam de uma boa reputação. As zonas de inundação, certamente menos caras, deveriam acomodar as populações de baixa renda. Mas, à exceção do Palatino, sofisticado e imperial, não havia um zoneamento urbano exacerbado.


Finalmente, não devemos esquecer que, na longa história de Roma, a geografia urbana sempre esteve em transformação: bairros desapareceram com a construção dos fóruns imperiais; áreas populares da periferia imediata do centro, como partes do Aventino, acolheram aristocratas quando o Palatino foi ocupado pelo príncipe e seus parentes; domus, verdadeiros palácios urbanos, podiam substituir prédios (ou vice-versa). Roma não foi feita em um dia, suas favelas tampouco e suas condições de vida, uma vez desmascaradas as caricaturas e a sátira, não eram, sem dúvida, mais dramáticas (ou até menos) do que em muitas metrópoles antigas ou mais recentes.


(Tradução: Julio Cesar Magalhães de Oliveira).


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