Por Juliana Marques Morais, Doutoranda em História Social, Universidade de São Paulo.
Entre os suntuosos edifícios que compõem o centro histórico romano, a Basílica de Sant’Agnese in Agone, localizada na Piazza Navona, se destaca na paisagem por sua magnitude. Um dos principais atrativos é o pequeno santuário instalado em seu interior, onde se encontra depositado o crânio de Santa Inês. A jovem cidadã romana é uma (talvez a mais conhecida e celebrada) das figuras femininas que integram o ilustre grupo de mártires cristãos, vítimas das perseguições empreendidas pelas autoridades romanas entre os séculos III e IV.
A história do martírio de Santa Inês foi contada e recontada ao longo dos séculos. A cada nova composição, a narrativa ganhava detalhes miraculosos e extraordinários, em uma trama cheia de vingança, heroísmo e plot twist, que não perde em nada para as ficções e fantasias modernas. Inês teria entre 12 e 13 anos quando recusou o pedido de casamento do filho do prefeito de Roma. Com o orgulho ferido, esse a denunciou às autoridades por ser praticante do cristianismo – considerado, pelo menos desde o século II, uma religião ilegal (religio ilicita). Ao que tudo indica, a jovem foi condenada à morte diante da recusa em prestar honras e sacrifícios aos deuses, cuja obrigatoriedade estava prevista em um dos éditos emitido pelo imperador Diocleciano entre os anos de 303 e 304, período esse que passou a ser conhecido como a Grande Perseguição.
Antes de ser executada, a mártir foi condenada a uma série de humilhações públicas, dentre as quais ser exposta nua em um bordel. Contudo, intervenções miraculosas como uma luz que causava cegueira ao espectador ou mesmo o crescimento repentino dos cabelos com a finalidade de cobrir-lhe o corpo, impediam que sua pureza fosse violada.
É possível que você conheça histórias como essa, que narram os atos de mulheres e homens que foram presos, torturados e/ou executados em defesa de sua fé. Muitas delas chegaram até nós por meio de atas, paixões e legendas escritas com diferentes propósitos, dentre os quais preservar a memória dos mártires e criar modelos de comportamento. Nesse último quesito, as narrativas que possuem mulheres mártires, na maioria das vezes, apresentam um ponto em comum: além de possuírem os mesmos atributos que os mártires homens, como bravura e resiliência, às mulheres eram atribuídas virtudes como castidade, pureza e modéstia, o que contribuía para o estabelecimento de um modelo de comportamento feminino idealizado.
Mesmo tendo como premissa um ideal feminino, esses textos podem nos auxiliar na compreensão de aspectos da vida dessas mulheres para além do âmbito religioso. Para isso, é necessário que nosso olhar seja direcionado para as ações e possíveis intenções dessas personagens. No caso de Santa Inês, por exemplo, podemos destacar a não conformidade aos padrões sociais vigentes, por meio da recusa a um casamento indesejado.
Em alguns casos raros, temos a felicidade de nos depararmos com textos em que essas mulheres possuem uma voz ativa, dando sentido a sua própria experiência. Um dos exemplos mais fascinantes pode ser encontrado na Paixão de Perpétua e Felicidade, um texto do início do século III, que relata a prisão, a condenação e os últimos dias de jovens catecúmenos que sofreram o martírio na cidade de Cartago, no Norte da África, em 203. O texto é composto, quase que em sua totalidade, pelo diário de uma das mártires, Víbia Perpétua, que o escreveu no cárcere, enquanto aguardava o julgamento. Perpétua, que tinha pouco mais de vinte anos quando sofreu o martírio, foi condenada junto com sua companheira de martírio, Felicidade, a lutar com as feras no anfiteatro (ad bestias). O animal escolhido foi uma vaca, como uma forma de humilhação, tendo em vista que Perpétua ainda era lactante quando foi presa e Felicidade tinha dado à luz no cárcere.
Ao contrário de Felicidade que era uma escrava, Perpétua era de família nobre, instruída nas artes liberais, legitimamente casada e mãe de uma criança pequena (Passio Perp. II). Embora a figura do marido seja omitida no diário, a presença do pai é constante no relato. O edito do Imperador Septímio Severo, emitido no ano 202, proibia a conversão ao cristianismo e judaísmo, sob pena de morte. Entretanto, aqueles que negassem sua fé cristã poderiam ser liberados. Apoiando-se nessa ideia, o pai de Perpétua a visita diversas vezes na prisão, com o objetivo de convencê-la a desistir do que chama de “loucura”. Entre os argumentos estavam o abandono de Perpétua de suas obrigações como esposa e mãe e a vergonha que trazia à família, não só pelo ato criminoso, mas pela desobediência à figura paterna.
Ao mesmo tempo que sofria sanções sociais e familiares representadas pela figura do pai, Perpétua ganhava poder e prestígio diante da comunidade religiosa, enquanto se mantinha irredutível em sua decisão e avançava rumo ao martírio. À medida que a narrativa progride, seu status se altera. Os soldados que “[…] nos tratavam brutalmente” (Passio Perp. III); passam na pessoa de Prudente, soldado, oficial do cárcere, a demonstrar uma grande consideração, pelo grupo, “[…] por entender que havia em nós uma grande virtude” (Passio Perp. IX). De jovem catecúmena passa a ser tratada como Senhora (domina), primeiro por seu irmão: “Senhora irmã, chegou a uma alta dignidade, tão alta que podes pedir uma visão […]” (Passio Perp. IV). Depois, até mesmo por seu pai: “Assim falava como pai, me beijava as mãos, e se lançava a meus pés, e me chamava entre lágrimas, não mais sua filha, e sim sua senhora” (Passio Perp. V).
Embora o grupo de mártires fosse composto por mulheres de diferentes camadas sociais, quando pensamos em um panorama mais amplo, todas estavam inseridas em determinadas relações de subalternidade no âmbito social. Seja como escravas, filhas ou esposas, as mulheres respondiam à autoridade do pater familias. O martírio, muitas vezes, era uma forma de subverter essas relações.
Desse modo, mais do que exemplos de castidade e pureza, o que os textos martiriais nos revelam é que as mulheres mártires, na maioria das vezes, desafiavam tanto o Estado, quanto as convenções sociais impostas por uma sociedade patriarcal. Como recompensa, elas dividiam com seus irmãos de fé, “de igual para igual”, as honras atribuídas aos mártires, sem distinção de gênero ou classe social.