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Foto do escritorJulio Magalhaes

Camponeses, protesto e escrita na África Romana

Atualizado: 17 de ago. de 2021

Por Julio Cesar Magalhães de Oliveira, Universidade de São Paulo.


[Em setembro, a Editora Intermeios vai lançar o livro Sociedade e Cultura na África Romana, Oito Ensaios e Duas Traduções, de Julio Cesar Magalhães de Oliveira. O Blog apresenta a seguir um excerto (adaptado) de um dos capítulos do livro.]


Plantação de oliveiras ao redor de Duga, na Tunísia. Ao fundo, o mausoléu de Atban, um exemplo da arquitetura númida pré-romana que preserva uma inscrição bilíngue líbico-púnica. Foto: Julio Cesar Magalhães de Oliveira, 2005.

É comum, entre os estudiosos da Antiguidade, postular, mesmo na ausência de estatísticas, que a maioria dos camponeses no mundo antigo foi sempre incapaz de escrever e provavelmente de ler. Mas essa ênfase no número absoluto de alfabetizados não nos permite entender como é então possível que a palavra escrita se torne, sob a forma da petição ou da carta ameaçadora, uma forma tão efetiva e tão recorrente de protesto camponês.


Vejamos o caso do Norte da África. A mais famosa rebelião camponesa na região, os protestos dirigidos nos anos 340 d.C. pelo grupo de militantes cristãos conhecidos nas fontes católicas como “circunceliões”, são também o exemplo mais claro que podemos ter do uso da escrita como arma de protesto. Nas palavras do bispo católico Optato de Mileve (III, 4, 3-5):


Naquela época, [...] quando Axido e Fasir eram chamados por esses insensatos de chefes de santos, ninguém podia viver em segurança em suas próprias terras. Os contratos escritos dos devedores tinham perdido seu valor, nenhum credor naquele tempo teve liberdade de cobrar o que lhe deviam, uma vez que todos estavam aterrorizados pelas cartas daqueles que se jactavam de serem os “chefes dos santos”. E, caso seus mandatos demorassem a ser cumpridos, uma multidão insana acorria de repente e, prevalecendo o terror, os credores eram cercados de perigos, de tal modo que aqueles que deviam ser rogados por seus empréstimos, eram agora impelidos, por medo da morte, a se humilharem e suplicarem. Cada um se apressava em perder as somas que lhe eram devidas e considerava como lucro poder escapar da violência desses homens.

Essa passagem já foi interpretada por historiadores como William Frend como a maior evidência da existência na África Romana tardia de um movimento revolucionário camponês que expressava, em sua forma mais extrema, a união do descontentamento religioso e social sob a bandeira da Igreja Donatista. Outros autores viram na revolta descrita por Optato uma reação esporádica e impulsiva, suscitada quer pela degradação das condições econômicas no campo, quer pela ruptura das redes de patronato que teriam mantido, no passado, a deferência dos camponeses.


Recentemente, Leslie Dossey sugeriu uma abordagem mais produtiva. Inspirada na teoria pós-colonial e levando em conta os recentes trabalhos arqueológicos sobre o campo africano, Dossey propôs um novo modo de compreender o protesto camponês: não como um movimento de oposição à dominação romana em si, nem como uma reação impulsiva a uma degradação econômica que não se verifica, mas como uma forma nova de articular antigas reivindicações. Os rebeldes descritos por Optato não pretendiam criar uma nova ordem social, mas denunciavam a injustiça do endividamento e mesmo a ilegalidade da escravidão por dívidas. Para Dossey, foi a leitura em comum de textos bíblicos que lhes permitiu identificar sua situação como moralmente injusta e foi a apropriação em seu benefício da cultura documental centrada no valor da palavra escrita que lhes permitiu expressar esse descontentamento.


A redação de cartas ameaçadoras em nome dos “chefes dos santos” e a emissão de “mandatos” extrajudiciais obrigando a invalidação de contratos injustos eram, sem dúvida, uma novidade nas formas de protesto camponês. Mas, de meu ponto de vista, ela não resulta de uma nova cultura escrita, mas da apropriação de técnicas antigas apenas de uma forma mais agressiva.


A difusão da escrita no campo africano remonta ao período pré-romano, mas as inscrições em púnico e líbico sugerem que se tratava de um uso, sobretudo, comemorativo. A integração da África do Norte ao Império Romano implicou desde muito cedo em usos mais práticos, ditados pela imposição de um controle administrativo, fiscal e militar baseado em registros escritos e pela crescente monetarização da economia rural, que implicou na redação de contratos de empréstimo e recibos de quitação de dívidas.


A inscrição de Henchir Mettich (CIL VIII, 25902), uma das sete grandes inscrições sobre os domínios imperiais do vale do Bagradas. A inscrição estabelece o regulamento de cultivo na Villa Magna Variana, também chamada de Mappalia Siga, concedendo aos colonos benefícios para o desbravamento de novas terras. Fonte: Wikimedia Commons.

O próprio sistema de arrendatários gerais e camponeses meeiros, que consistia no modo básico de exploração da terra na África, parece ter sido completamente dependente das relações contratuais baseadas na documentação escrita. No caso bem conhecido das grandes inscrições sobre os domínios imperiais do vale do Bagradas, datadas dos séculos II e III, não apenas os termos do cultivo da terra eram fixados em regulamentos, como as parcelas devidas pelos colonos (ou meeiros) eram registradas em tabuinhas e notificações por escrito podiam ser endereçadas pelos arrendatários gerais aos colonos que abandonavam o cultivo das terras a que eles haviam se comprometido a cultivar.


No entanto, como essas mesmas inscrições nos mostraram, o uso da escrita nesses casos não era apenas imposto, mas também ativamente apropriado pelos camponeses. Os regulamentos eram gravados em pedra pelos próprios representantes dos colonos porque eles lhes davam garantias de poderem usufruir, vender e legar a seus herdeiros o direito de exploração das terras que haviam desbravado, cultivando oliveiras, videiras e árvores frutíferas. Outras inscrições preservam inclusive as reclamações dos camponeses dos domínios imperiais contra os abusos de poder dos arrendatários gerais e dos procuradores imperiais em petições endereçadas ao próprio imperador e a resposta favorável que dele obtiveram. A própria qualidade das pedras, o cuidado com que as letras foram gravadas e o caráter monumental dessas inscrições mostram uma preocupação desses camponeses meeiros de se mostrarem participantes dessa cultura escrita e anunciar aos gestores futuros que seus direitos eram garantidos pelo imperador em pessoa.


Um exemplo semelhante do uso coletivo da escrita por camponeses, mas mais tardio, nos é revelado por uma das cartas novas de Santo Agostinho (a Carta Divjak 20*). Por essa carta, datada de 422, o bispo de Hipona descreve a uma nobre romana a reação de habitantes de algumas comunidades rurais desmembradas de sua diocese que se recusavam a aceitar a reintegração do bispo Antonino, afastado por abuso de poder. A sede desse bispado rural era o vilarejo de Fussala, um antigo povoado donatista integrado ao rebanho de Agostinho após anos de resistência violenta aos missionários católicos. A maioria de seus habitantes e das fazendas ao redor comunicava-se apenas em púnico e foi por ter sido instruído nessa língua que Antonino havia sido consagrado como o primeiro bispo do vilarejo. Apesar disso, o povoado e as fazendas vizinhas dispunham de pelo menos uma minoria significativa de alfabetizados capazes de escrever, como vemos por suas petições enviadas a Hipona.


O caso mais significativo é o dos colonos da fazenda de Togonoeto. Os colonos dessa fazenda dispunham de seus próprios escribas e podiam escrever uma carta coletiva a Agostinho e outra à proprietária absenteísta exigindo que a fazenda não fizesse parte das paróquias deixadas a Antonino; caso contrário, ameaçavam, eles “abandonariam a terra de imediato” (Carta Divjak 20*, 10)! A ousadia e a autoconfiança expressas nessa passagem não são diferentes da audácia dos colonos de um dos domínios imperiais do século II, que também ameaçavam abandonar a propriedade e ir “aonde possamos viver em liberdade” se o imperador não os atendesse (CIL VIII, 14428). No caso dos colonos de Togonoeto, porém, essa disposição à resistência era uma consequência da solidariedade coletiva e da proteção do anonimato. É por essa razão que, quando os bispos se reúnem na igrejinha da fazenda para ouvir os mesmos colonos, estes se recusam a deixar suas queixas registradas nas atas no nome de cada um e deixam os bispos falando sozinhos.


O que vemos em Togonoeto e Fussala em 422 é, portanto, uma organização camponesa e uma forma de manifestação baseada no uso coletivo da palavra escrita que lembra muitas das iniciativas dos colonos dos domínios imperiais mencionadas nas inscrições do século II, mas que contrasta com a revolta dos anos 340 evocada por Optato. O que faz a diferença entre os anos 340 e os anos 420 não é nem o descontentamento, nem a disposição de resistência, nem a “tecnologia proporcionada pela cultura escrita”, mas a mudança no que os estudiosos dos movimentos sociais chamam de “oportunidades políticas”. Quando militantes originários das comunidades rurais, mas em grande parte delas independentes, atuando nos mercados rurais e imaginando-se incentivados pelo discurso de seus próprios bispos servem como elemento catalizador, a força da “multidão insana” pode se impor. Mas em tempos de refluxo da mobilização (o que é certamente o caso de Fussala e de outros antigos vilarejos donatistas desde 412, após a supressão autoritária do cisma pelo aparato do Estado imperial), a segurança do anonimato, da escrita coletiva e da petição voltam a ser a arma normal do protesto camponês.


Que a palavra escrita possa ser utilizada para ambos os fins é apenas uma decorrência dos níveis de alfabetização atingidos no mundo romano e das redes de solidariedade camponesa que os transformaram em uma arma ao alcance até mesmo dos “ignorantes de letras”.


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