Por Julio Cesar Magalhães de Oliveira, Universidade de São Paulo.
As classes populares poucas vezes tiveram protagonismo nas representações modernas da Roma Antiga em filmes ou seriados. Nesse sentido, a série Roma da HBO, produzida entre 2004 e 2007, marcou uma importante mudança. Enquanto o universo das grandes personalidades do final da República é ainda representado segundo uma tradição bem conhecida no cinema, o mundo das classes populares, de Voreno e Pulo, os personagens principais, é tratado de forma inovadora. Tomemos o caso das mulheres, já estudado por Maureen Ragalie. Enquanto as damas da elite, como Átia e Servília, reproduzem o conhecido estereótipo da voracidade sexual e da manipulação, a plebeia Niobe ou a escrava Irene são tratadas de forma muito mais realista do que os ideais cristãos presentes em filmes mais antigos como Quo Vadis?, Ben-Hur ou Os últimos dias de Pompeia. Isso não quer dizer que o universo popular seja retratado sempre de forma positiva. Na segunda temporada, o veterano de guerra Voreno é encarregado pelo cônsul Marco Antônio de comandar o collegium do Aventino, assumindo assim o controle de um dos centros do crime organizado de Roma. Na série, os collegia são retratados como covis de ladrões e prostitutas e os collegiati, como criminosos armados comandados por “capitães” que controlam os bairros de Roma. Eles extorquem os habitantes em troca de proteção e organizam serviços como a distribuição de peixe e trigo, enquanto se enfrentam com outras gangues em intermináveis acertos de conta. Estamos, portanto, num mundo não muito diferente das máfias italianas ou, se preferirem, dos traficantes e milicianos nos morros do Rio de Janeiro.
Os collegia históricos, contudo, eram apenas associações de moradores de um bairro específico, que compartilhavam uma mesma profissão ou cultuavam uma mesma divindade. Reuniam tanto trabalhadores livres pobres, como escravos e libertos. Como os vici, os pagi e os montes (associações de bairro), eles ofereciam a uma população instável de uma cidade gigantesca para os padrões antigos um sentido de identidade e pertencimento. Os collegia, como os vici, eram comandados por líderes eleitos pelos associados, os magistri (equivalentes aos “capitães” da série Roma). A principal função dessas associações era oferecer ajuda mútua (por exemplo, dando sepultura aos associados falecidos), promover a sociabilidade em banquetes e festas e reunir seus membros para o culto comum de uma divindade protetora (o que também é representado na série pelo culto da deusa Concórdia). Nos últimos anos da República, os chefes dos vici, mas não os dos collegia, assumiram a responsabilidade de organizar distribuições de alimentos em colaboração com o poder central. Mas não há em nossas fontes nenhum indício de que qualquer tipo de associação tivesse se envolvido em disputas de território ou exercido práticas de extorsão criminosa dos habitantes dos bairros semelhantes às da máfia moderna. Por que, então, os collegia na série são identificados como organizações criminosas?
Arthur Pomeroy já observou que as imagens de violência organizada, práticas ilícitas e ações de gangue associadas aos collegia na série Roma se devem, antes de tudo, ao modelo dos filmes de gângsters hollywoodianos. É fácil reconhecer na série a influência de filmes como Scarface, de Howard Hawks, Gangues de Nova York, de Martin Scorcese, ou O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. No entanto, o ponto de partida para essa visão dos collegia como bandos de criminosos armados foi baseado nas próprias fontes antigas. Um indício disso é dado nas informações extras da série: “Gangues criminosas foram armadas pela primeira vez por Clódio. Ele fez isso na esperança de que elas poderiam lutar por ele”. Públio Clódio Pulcro foi um dos mais destacados líderes populares do final da República e inimigo mortal de Cícero, o famoso orador. Na condição de tribuno da plebe, Clódio não apenas obteve o exílio de Cícero em 58 a.C., como destruiu com seu bando a casa do ex-cônsul no Palatino, construindo no lugar um templo à Liberdade. Conquistou o apoio da rua afetando respeito pelos escravos de seu bando, prometendo lutar pelo direito de voto dos libertos, mas, sobretudo, conseguindo em 58 a.C. a aprovação de uma lei que garantiu a gratuidade das distribuições de trigo para a plebe de Roma. Foi morto em 52 a.C. pelos escravos e agregados de Milão, um dos amigos de Cícero, quando os dois se encontraram, por acaso, na via Ápia. De Clódio, nada nos chegou e sobre ele temos apenas o ponto de vista hostil das obras de Cícero.
Clódio não foi o primeiro líder a perceber o potencial político da rede de associações espalhada pela cidade de Roma, mas foi ele quem melhor soube utilizar os collegia como base para recrutar uma verdadeira força paramilitar. Com esse bando recrutado bairro por bairro, Clódio pôde enfrentar seus adversários políticos e ocupar o fórum nos dias em que leis importantes seriam votadas para garantir sua aprovação. Para Cícero, o que mais chocava na estratégia política de Clódio não era a violência em si. Seus amigos, Tito Ânio Milão e Públio Séstio, eram verdadeiros milicianos, chefes de bandos armados formados para caçar nas ruas os partidários de Clódio. Mas como eram do partido oligarca, eram tratados pelo orador como “homens nobres" e "beneméritos da República” (Pro Sestio, 9, 21)! O que mais chocava Cícero era o tipo de gente que Clódio mobilizava e o poder que assumiam: “ou você acha que o Povo Romano é essa gente que recebe salário, que é impelida a agredir os magistrados, que bloqueia o Senado, que só pensa a cada dia em morte, incêndio e roubo? É esse o Povo que só se reúne quando suas lojas estão fechadas? (...) E pensar que o orgulho e a dignidade do Povo Romano (...) possam ser representados por essa turba de homens recrutados entre escravos, mercenários, bandidos e miseráveis!” (De Domo, 29, 89).
No fim, é essa visão alarmista e elitista de Cícero que informa a representação dos collegia na série Roma. Mas é preciso lembrar que, tanto no passado, como hoje, a criminalização indiscriminada das organizações de trabalhadores diz muito mais sobre os temores e estratégias de quem promove esse discurso do que sobre o que os trabalhadores realmente fazem. Cícero não seria o único político a ter seus milicianos de estimação.