Marcio Monteneri, doutorando em História Social pela USP e editor adjunto do Blog, desenvolve uma pesquisa para sua tese de doutorado sobre os grafites de Óstia, o antigo porto de Roma, como uma prática de grupos subalternos e sua evolução entre os séculos I e IV d.C. Em novembro, ele apresentou no Departamento de História da USP uma palestra sobre essa pesquisa em andamento e, nessa ocasião, falou ao Blog sobre sua trajetória e sobre sua metodologia de trabalho.
A primeira pergunta que eu gostaria de fazer é sobre o seu interesse pelo tema dos grafites em Óstia. Desde a sua iniciação científica, você estuda a cidade, mas houve uma mudança significativa no objeto de estudo ao longo do tempo. O que motivou essa transição de foco para os grafites e os grupos subalternos?
Eu comecei estudando a cidade e suas transformações a partir das casas de elite. Isso foi na minha iniciação científica. Nesse primeiro momento, eu estudei a casa do ponto de vista do proprietário mesmo, do planejamento dessas domus, pensando em como os próprios donos delas organizavam e utilizavam essas casas de acordo com suas necessidades. No mestrado eu acabei mudando um pouco o foco. Eu me incomodava, na verdade, com a ausência de outros grupos nos trabalhos que eu lia sobre as casas. Então, decidi explorar essas casas também da perspectiva dos grupos subalternos, de quem as utilizava ou mesmo moravam nelas como escravos da família ou clientes do aristocrata. Foi aí que eu me deparei com os grafites da cidade, porque, para explorar as casas do ponto de vista dos grupos subalternos, eu tive que buscar por evidências desses grupos, dado que a arqueologia e a inexistência de textos nem sempre permitem a abordagem desse grupo. Então, decidi explorar grafites e fui pesquisar a existência desses grafites. Vi que tinha uma série deles e a maioria é inédita e pouco explorada. Foi então que descobri essas evidências e quis explorar de uma forma mais sistemática, em uma perspectiva histórica.
Os grafites têm sido uma fonte valiosa para entender a vida cotidiana de grupos subalternos, como escravos e trabalhadores, em Óstia. Como essas inscrições ajudam a revelar as dinâmicas sociais e culturais desses grupos entre os séculos I e IV d.C.?
Essas inscrições são, de fato, muito importantes para entender esses grupos e elas nos ajudam a pensar em uma série de questões, iluminam uma série de aspectos da vida desses grupos. Podemos pensar desde a condição social do subalterno que está por trás de um grafite, podemos pensar também a partir dessas inscrições na mobilidade social desses grupos, as coisas que essas pessoas viram na experiência de vida delas e que são registadas nas paredes como, por exemplo, uma visita ao circo. Então, nesse sentido, eu falo que podemos conhecer até a mobilidade desses grupos pela cidade, enfim, pelo Império Romano como um todo. Podemos pensar também nas habilidades, no nível de alfabetização desses grupos, sua cultura visual, suas habilidades técnicas de escrever e desenhar. Acho que podemos testar também lugares, obviamente, que é algo que eu dou bastante ênfase na minha pesquisa. Os lugares em que esses grupos se se reuniam e por onde circulavam e nas relações sociais deles, também pensando em grafites que expressam talvez relações mais amistosas, mas também competitividade entre esses grupos. Então, creio que o grafite, de uma forma geral, pode ser utilizado para iluminar vários aspectos da vida dos grupos subalternos.
Em relação ao seu doutorado, gostaria que você comentasse como o tema dos grafites surgiu e explicasse um pouco sobre o trabalho que está em andamento. Quais têm sido os principais desafios na pesquisa com esse tipo de fonte, e como você tem enfrentado questões como datação e interpretação dos grafites?
Os grafites realmente são, por natureza, fontes bastante efêmeras, no sentido de que, mesmo na época, muitos devem ter se perdido. Mesmo daqueles que foram escavados, só uma parcela chegou até nós. Então, uma das dificuldades é de fato interpretar esse grafites, dadas as condições de preservação, sobretudo no caso de Óstia, que não é um sítio que teve o mesmo destino de Pompeia, que devido à erupção do Vesúvio acabou conservando mais as inscrições. Óstia não é bem por aí, então o estado de conservação desses grafites é algo que é muito difícil de lidar, porque é muito difícil enxergarmos o que está na inscrição, o que está desenhado, o que compromete a interpretação, a datação também. É muito difícil de estudar os grafites de Óstia a partir de uma perspectiva de estilística ou técnica porque eles não foram estudados em conjunto como os de Pompeia. Então, é quase impossível você estabelecer uma datação a partir de um estilo, de um tipo de grafite porque eles não foram estudados dessa forma. Normalmente, o que sobra como base para datação é o suporte em que essa inscrição se encontra: pode ser um piso, uma parede, uma coluna. Precisamos datar esse suporte para pensar pelo menos um período amplo a que esse grafite corresponde. Por exemplo, um grafite pode corresponder ao final do século segundo e início do século terceiro, nunca a uma data específica. A depender do conteúdo podemos ter algo mais próximo, mas em geral nos baseamos no suporte e nem sempre é fácil datar o suporte também. Mas, apesar disso tudo, é possível pensar em períodos ou, pelo menos, um período aproximado.
No seu doutorado, você utiliza a criação de mapas e esquemas para analisar a distribuição topográfica dos grafites em Óstia, destacando os locais de atuação dos grupos subalternos. Como tem sido essa experiência de mapeamento e de que forma essa abordagem tem contribuído para revelar as práticas sociais e os espaços ocupados por esses grupos na cidade?
Em geral, o estudo dos grafites, principalmente os de Óstia, mas mesmo os mais estudados em Pompeia, com algumas exceções, acaba sofrendo com a falta de importância que é dada para o contexto da inscrição. Muitas vezes, quem se interessa por essas inscrições está interessado na língua em que elas foram escritas, em questões gramaticais, do latim ou do grego. É óbvio que há muitas exceções em Pompeia, como Renata Serra Garraffoni e Pedro Paulo Funari, que são estudiosos que têm me inspirado a justamente pensar mais no espaço e no contexto físico dos grafites. Então, essa questão do mapeamento dos grafites tem me ajudado a olhar para eles de uma forma diferente, que é pensar na distribuição desses grafites pela cidade. Ou seja, no primeiro momento, pensar em quais edifícios, quais espaços da cidade esses grafites se encontram e, depois, também pensar na localização específica desses grafites dentro do espaço ou dentro do edifício em questão. No primeiro momento, você olha de cima o mapa da cidade e identifica os lugares em que eles estão. Depois, você aproxima essa visão e vai ver isso dentro de uma planta por exemplo. E, sempre pensando em usos mesmo, de novo, lugares de reunião, circulação dos subalternos, mas também lugares em que eles se encontram dentro dos edifícios, o que eles talvez conversavam, as relações sociais que eles estabeleciam. Ou seja, em linhas gerais, são as práticas, experiências e relações sociais que são construídas em torno do espaço que têm me interessado bastante. E o mapeamento é sem dúvida uma ferramenta que tem me ajudado muito a olhar a partir de outra perspectiva, não só o grafite por ele mesmo, mas o grafite em um espaço amplo.
Entrevista e transcrição: Michele Santos
Foto: Julio Cesar Magalhães de Oliveira
Revisão: Julio Cesar Magalhães de Oliveira
Tags: #grafites #Óstia #domus #ImpérioRomano