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Foto do escritorJulio Magalhaes

Memórias da plebe

Atualizado: 22 de abr. de 2019

Por Julio Cesar Magalhães de Oliveira, Universidade de São Paulo.


No dia 14 de março de 2019, o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e de seu motorista Anderson Gomes completou um ano, sem que os mandantes tivessem sido identificados. (Os supostos executores, dois ex-policiais militares, haviam sido presos apenas dois dias antes do primeiro aniversário do crime.) A data foi marcada por homenagens a Marielle em várias cidades do Brasil e do exterior, mas especialmente no Rio de Janeiro. No local do crime, onde o carro da vereadora foi alvejado, no Complexo da Maré, onde Marielle nasceu, nas escadarias da Câmara de Vereadores, flores, faixas e palavras de ordem entoadas por manifestantes clamavam por justiça e insistiam em lembrar que, apesar de seu brutal assassinato, “Marielle vive”. Mesmo após todas as tentativas de seus adversários políticos de difamar a vereadora e destruir sua memória (até mesmo rasgando num ato público uma placa com seu nome), a ampla indignação suscitada por sua morte converteu Marielle num símbolo. Isso nos lembra que o “trabalho de memória” (para utilizar a expressão cunhada por Paul Ricoeur) é parte essencial da política e pode ser, muitas vezes, uma forma poderosa de resistência.


A história romana oferece outros exemplos desse mesmo processo. Vejamos o caso dos assassinatos dos irmãos Gracos e de sua memória cultivada pela plebe. Tibério e Caio Graco eram oriundos da mais alta nobreza romana, mas assumiram no final do século II a.C. a liderança de um movimento agrário em defesa dos cidadãos camponeses, então em conflito com os latifundiários. Por essa época, segundo Apiano: “Os ricos tomavam a maior parte das terras públicas e, confiantes de que ninguém nunca as retomariam, começavam a avançar nos lotes vizinhos e nos poucos acres dos pobres camponeses das redondezas, às vezes pela persuasão, outras pela força, de forma que, ao final, estavam em suas mãos imensas propriedades rurais, no lugar dos antigos pequenos lotes camponeses” (Guerras civis, 1, 1, 7, tradução de Pedro Paulo Funari). Os destituídos eram obrigados a tentar a vida em Roma, engrossando a população da capital. Essa situação que ameaçava a própria estrutura do exército, composto por soldados-cidadãos-camponeses, foi o que levou Tibério Graco a se candidatar ao cargo de tribuno da plebe. Logo após sua posse, em 10 de dezembro de 134 a.C., Tibério propôs uma lei que limitava o uso das terras públicas pelos grandes proprietários até o máximo de 125 hectares. As terras públicas ocupadas além desse limite seriam retomadas e repartidas entre os cidadãos pobres em lotes de 7,5 hectares.


A reforma que Tibério propunha estava longe de ser radical, mas foi suficiente para suscitar a oposição de senadores que o acusaram de aspirar à monarquia e finalmente o assassinaram quando se candidatava à reeleição. Anos mais tarde, em 124 a.C., seu irmão, Caio Graco, foi eleito para o cargo de tribuno e decidiu empreender um programa legislativo muito mais ambicioso. Suas reformas incluíam a ampliação dos lotes a serem redistribuídos de 7,5 para 50 hectares, a reforma do exército, a extensão da cidadania aos aliados itálicos, a implantação de cidadãos pobres em colônias e a distribuição de alimentos à plebe de Roma. Durante algum tempo teve êxito, mas, em 121 a.C., os oligarcas conseguiram convencer os cidadãos pobres de que a extensão da cidadania aos itálicos prejudicava seus interesses e impediram a aprovação dessa lei. Depois, responsabilizaram Caio Graco pela morte de um homem num confronto entre partidários e adversários das reformas. Por fim, tendo decretado o estado de sítio, assassinaram-no com mais de três mil cidadãos que o apoiavam.


Os Gracos continuariam a inspirar os revolucionários modernos. Neste quadro de 1798, François Topino-Lebrun representa a morte de Caio Graco e presta homenagem a François-Noël Babeuf, o teórico do comunismo agrário executado pelo Diretório no ano anterior. Babeuf havia adotado o nome de Gracchus em homenagem aos tribunos. (Marselha, Musée des Beaux-Arts de Marseille).

A morte de Caio Graco foi um momento decisivo para a construção de uma memória especificamente plebeia. Como Cyril Courrier ressaltou em seu livro La plèbe de Rome et sa culture [a plebe de Roma e sua cultura], foi nesse momento que, pela primeira vez, a plebe urbana afirmou sua pretensão de possuir uma memória própria, uma história particular, distinta e mesmo oposta àquela reivindicada pelos aristocratas. Segundo o relato de Plutarco, poucos anos após o massacre de Caio Graco e seus partidários, Lúcio Opímio, o cônsul que havia liderado esses assassinatos, foi condenado por corrupção e exilado: “ele envelheceu privado de seus direitos cívicos, odiado e desprezado pelo povo que, durante os eventos, havia ficado abatido e intimidado, mas que, pouco depois, fez ver o quanto amava os Gracos, erigindo estátuas para eles em local público, consagrando os lugares onde haviam sido assassinados e oferecendo a eles as primícias dos frutos de cada estação. Muitos faziam até mesmo sacrifícios todos os dias e vinham, muitas vezes, prostrar-se nesses lugares, como se fosse um santuário dos deuses” (Vida de Caio Graco, XVIII, 1-3).


O que vemos nesse trecho é a emergência de um culto espontâneo à memória dos heróis da plebe, culto tanto mais significativo quando sabemos que o Senado havia condenado oficialmente a memória de Caio Graco. A insistência da plebe urbana em não aceitar esse apagamento da memória também pode ser vista em outra passagem do mesmo relato de Plutarco: “Mas o que indignava a maioria (hoi polloi), mais até do que a morte daquele jovem e de todos os outros, foi a construção por Opímio de um templo à Concórdia. De fato, ele parecia assim se orgulhar, se gabar e, por assim dizer, celebrar um triunfo pelo assassinato de tantos cidadãos. Por isso, durante a noite, sob a dedicatória do templo, alguém escreveu este verso: ‘A Discórdia construiu este templo à Concórdia!’” (Vida de Caio Graco, XVII, 8-9).

A cisão entre as memórias aristocrática e plebeia dos irmãos Gracos, que vemos nesse episódio, seria um caminho sem volta. Quase sessenta anos mais tarde, Cícero, em seus discursos consulares, ainda teria o cuidado de tratar os Gracos como “heróis” ao se dirigir ao povo e como “demagogos” ao falar a seus pares no Senado. De fato, como Cyril Courrier observou, “foi no conflito e pelo conflito que a memória plebeia se formou”. Foi a indignação pelo assassinato de Caio Graco e de tantos cidadãos que haviam lutado em seu favor que fez com que a plebe de Roma se reconhecesse como um grupo à parte, com sua história própria e seus interesses particulares. Há mesmo mortes que se tornam símbolos, mortos que se tornam sementes. Mas é o trabalho de memória de quem se resiste a esquecer que transforma a derrota momentânea em uma nova forma de poder.


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