Lucy Grig é professora na Escola de História, Estudos Clássicos e Arqueologia na Universidade de Edimburgo desde 2004. Tendo estudado estudos medievais em seu mestrado na Universidade de York, Grig retornou a Cambridge para fazer seu doutorado na Escola de Estudos Clássicos. Assim, os seus interesses giram em torno da Antiguidade Tardia, especialmente no campo dos estudos sobre a subalternidade, a cultura popular e a cristianização do Mediterrâneo. Grig também faz parte do nosso Grupo de Pesquisa sobre Grupos Subalternos e Práticas Populares na Antiguidade, e esteve em São Paulo em 2018 para participar do colóquio “Ancient History from Below: Possibilities and Challenges”. Grig falou ao Blog sobre seu mais recente livro, Popular Culture and the End of Antiquity in Southern Gaul, publicado pela Cambridge University Press, em 2024, e também sobre as possibilidades de pesquisa atuais nos campos da religiosidade e da cultura popular.
Como você escreveu em sua introdução, o tema da subalternidade e da cultura popular na Antiguidade era muito caro a estudiosos brasileiros como Pedro Paulo Funari. Hoje em dia, podemos perceber um interesse generalizado por este tema em todo o mundo. Você editou um livro sobre o assunto em 2017, Popular Culture in the Ancient World. Como e quando você se interessou por esse assunto e o que a levou a investigá-lo especialmente no Sul da Gália na Antiguidade Tardia?
Eu estive pensando sobre isso e acho que na verdade meu interesse na História da Cultura Popular remonta à época em que eu era uma adolescente estudando História na escola e eu fui a este curso no qual aprendemos tudo sobre os vários temas e estudos de caso clássicos sobre na cultura popular da Idade Moderna: Natalie Zemon Davies, Robert Darnton, Peter Burke. Embora eu tenha acabado por estudar História Antiga em um departamento de Estudos Clássicos, eu sempre tive esse fascínio pelo estudo da cultura popular e me perguntei se eu poderia de alguma forma investigar a cultura popular na Antiguidade Clássica e na Antiguidade Tardia de maneira semelhante a esses estudiosos da Idade Moderna. Ao longo dos anos, trabalhei em diversas áreas da História Social, Cultural e Religiosa. Passei bastante tempo pensando na História Social e Cultural das cidades e na História Urbana. Então, acho que essas ideias se encaixaram. A respeito de como eu cheguei ao Sul da Gália, foi uma maneira um tanto estranha. Eu nunca tinha trabalhado sobre a Provença. Meus estudos eram mais focados na Itália, Roma, Norte da África. Mas eu estava lendo The Culture of the Roman Plebs, escrito por Nicolas Horsfall, que é geralmente mais reconhecido por seu trabalho sobre Virgílio. Foi ele quem me introduziu a Cesário de Arles como um tipo de testemunha dessas práticas orais persistentes da plebe, em seus termos. Isso então me levou ao maravilhoso livro de William Klingshirn sobre Cesário. Comecei a ler os sermões, viajei para Arles, fui realmente fisgada e comecei a pensar que poderia me concentrar em Cesário e seu contexto social mais amplo dessa região e usá-los como uma espécie de laboratório para investigar algumas perguntas-chave que eu tive por muito tempo sobre como nós entendemos a transformação do Mundo Romano de novas maneiras, como nós podemos pensar em mudanças que vinham “de baixo” bem como “de cima”, bem no espírito daquela maravilhosa conferência que participei em 2018 em São Paulo. E então eu comecei a pensar que esse seria o lugar onde eu podia fazer esse projeto e é daí que o livro veio.
A abundância de fontes escritas de natureza dialógica, como cartas e sermões, na Gália da Antiguidade Tardia é certamente algo que desperta interesse entre os estudiosos atraídos para o estudo da cultura popular. Você pode contar ao nosso público sobre seu livro e os tópicos que ele aborda?
As cartas, sermões e o material de Cesário de certa forma são uma parte central do livro. Mas na verdade eu os estou usando para investigar sobre que tipo de transformação está acontecendo. Podemos traçá-la? O Sul da Gália é bem particular, não apenas por causa da extraordinária documentação escrita e evidências arqueológicas, mas também porque a região ocupa um lugar peculiar na história do Ocidente tardo-antigo. Podemos dizer que ela apresenta algo como uma Antiguidade Tardia mais longa. As pessoas estavam se entretendo ao cantar músicas indecentes, ao dançar, ao participar de toda uma gama de práticas rituais que os bispos em particular não gostavam. E o que me interessa é como podemos entender ou propor uma espécie de descrição densa dessas práticas em contraste com as estruturas sociais, econômicas e culturais em transformação. Minha ideia é que, à medida que essas estruturas vão mudando, há novas lacunas e onde há lacunas há espaço. E é aí que vemos o tipo de luta ou debate ou dialética entre o tipo de figura dominadora de Cesário e as práticas das várias não-elites: camponeses, colonos, escravos, artesãos, moradores da cidade e assim por diante. Então é realmente isso que estou tentando fazer no livro: olhar para essas práticas, esses esforços e tentar usá-los para entender o que eles têm a contribuir para a nossa história da transformação do mundo clássico.
Quando você coloca sua definição de cultura popular, muito em sintonia com o que Stuart Hall pensava sobre o assunto, você escreve sobre seu embeddedness [enraizamento], que é uma palavra muito difícil de traduzir em português e outras línguas também. Isso lembra o conceito de embeddedness de Karl Polanyi, criado para explicar a economia antiga não como uma esfera separada da vida social, mas que as atividades econômicas estavam imiscuídas em instituições não-econômicas. Você pode nos falar um pouco mais sobre esse caráter da cultura popular e em que ela estaria imiscuída?
Gostei muito dessa pergunta. Primeiramente, ela me fez refletir sobre algo muito importante que eu realmente não tinha pensado antes. Essa noção da economia imiscuída no mundo antigo é, na verdade, algo que me foi ensinado muito profundamente quando eu estava na graduação, porque eu aprendi História Antiga com o pessoal de Cambridge, muito na tradição de Moses Finley. E me ensinaram muito veementemente essas ideias sobre a economia antiga na época. Obviamente, o que eu faço no meu livro é meio que inverter isso para propor o que pode parecer um argumento mais básico: em vez de partir da ideia de que a atividade econômica está imiscuída na cultura, penso que isso é na verdade apenas um lembrete de que qualquer tipo de atividade cultural não pode ser divorciada das relações econômicas e sociais, das relações de poder e das estruturas que lhe dão origem. Um bom exemplo para mim, que reuniria os dois, seria algo de que falo no capítulo mais longo do meu livro, que se concentra nas Calendas de Janeiro na Antiguidade Tardia. Este é um festival que tem uma série de atividades, algumas das quais são bem familiares. As pessoas bebem e dançam, cantam músicas, interpretam personagens, vestem fantasias, algumas bastante peculiares. Havia também atividades mais obviamente econômicas que fazem parte disso. A troca de presentes é uma grande parte deste festival. A prática da hospitalidade e da troca de presentes é bastante importante nas representações deste festival tanto no Oriente, como no Ocidente, o que me interessou muito. E assim podemos ver uma espécie de lutas em torno dessa troca de presentes. Temos bispos, por exemplo, ficando realmente preocupados se o tipo certo de pessoas está recebendo, se a doação está indo na direção certa. Por exemplo, as pessoas estão dando presentes para pessoas fora das estruturas de doação estabelecidas que a própria Igreja está tentando dominar neste momento? É o tipo de coisa sobre a qual Peter Brown obviamente escreveu muito alguns anos atrás. Também podemos ver como, no campo, os próprios proprietários de terras parecem estar realmente bastante interessados em manter esse tipo de práticas tradicionais de hospitalidade e doação aos seus inquilinos. É uma forma de manter as relações sociais e econômicas que eram de exploração, mas sobretudo estáveis, no meio rural da Antiguidade Tardia. Então, por fim, é claro, podemos ver como a própria não-elite – os subalternos, incluindo pessoas fora do tipo normal de estruturas, das estruturas estabelecidas – pode ela mesma fazer uso dessas práticas de troca de presentes para seu próprio benefício, como ela pode traçar para si mesma estratégias com essas práticas. Então, espero que isso responda a sua pergunta.
Você argumenta que o abandono e subsequente ocupação de espaços e edifícios públicos de cidades como Arles, Marselha, Nîmes, Aix e Narbona impulsionaram o desenvolvimento de uma cultura do tipo “faça você mesmo” que envolvia atividades que não eram patrocinadas pela elite, como o foram antes os espetáculos. Mas essas atividades não existiam antes nas cidades da Antiguidade? Elas eram diferentes de alguma maneira na Antiguidade Tardia e especialmente no Sul da Gália?
Em grande medida, a resposta é sim, claro. Essas são precisamente os tipos de práticas cujos fragmentos captamos ao longo da Antiguidade, particularmente as evidências de Pompeia, que eu menciono no primeiro capítulo. Mas penso que o que é diferente na Antiguidade Tardia é que elas não são balanceadas. Por outro lado, a cultura do tipo "faça você mesmo" se torna mais importante porque não temos mais essas atividades patrocinadas pela elite. Elas estão ocorrendo em novos espaços físicos, talvez também em novos espaços ideológicos. Essas atividades não podem ser controladas e é por isso que vemos Cesário se enraivecendo com elas. As evidências sugerem que, talvez, embora Cesário não gostasse dessas atividades, outros membros do clero estavam realmente participando. Temos reiterados cânones dos concílios da Gália que sugerem que clérigos estavam participando dessas atividades. Eles estavam sendo informados de que não podiam ir a casamentos onde houvesse artistas, por exemplo. Penso que esta é uma dessas questões em que a cultura popular da Antiguidade Tardia representa, em certa medida, uma grande parte da continuidade. Mas o contexto está mudando. Há um movimento para que as coisas se desenrolem dessa forma e um novo significado para atividades mais “de baixo para cima” que provavelmente ou possivelmente não havia antes.
Essa cultura popular, como você observou, era realmente malvista pelas elites gaulesas e pelo clero. Aqui, sua principal fonte textual é Cesário de Arles, como você já disse. Atribui-se a ele um esforço colossal para cristianizar o sul da Gália através de seus sermões. E lendo esses textos normativos a contrapelo, você deu vida a essa cultura não-autorizada que foi objeto de tensão e tentativas de controle. Você pode nos contar mais sobre essa pessoa, Cesário de Arles? Por que Cesário é uma fonte tão importante para entender a cultura popular na Gália da Antiguidade Tardia? E por que sua atitude é tão contenciosa em relação às atividades da não-elite?
Cesário não é totalmente peculiar, mas ele faz parte de uma categoria mais ampla de bispos aristocratas que você conhece bem. E eu acho que esse status aristocrático desempenha um papel muito importante em como ele se comporta da maneira que se comporta. Ele é um aristocrata da Borgonha e, como outros, desce para o sul da França, para a Provença. Ele é atraído pelas atividades ascéticas que acontecem no Reno e pelo movimento monástico ascético. Ele então acaba em Arles, onde tem alguns parentes aristocráticos que lhe são úteis. Em 502 ele se torna bispo, mas encontra oposição desde o princípio. Ele de fato parece encontrar alguma resistência em meio ao clero local. E não foi fácil para ele, como não foi para seus predecessores. Mas ele é uma figura bastante tenaz e entra em disputa e luta pela primazia com outros bispos locais e com o papa em Roma. O período de seu bispado é entre 502 e 542, claramente uma época de verdadeira crise política e militar. Mesmo na Provença, ele é acusado de traição mais de uma vez. Ele é preso e exilado em Bordeaux. Ainda assim, ele parece ser incansável em seu trabalho para consolidar a influência e o poder de sua forma particular de cristianismo ascético em Arles com o desenvolvimento de seus mosteiros e do campo em torno da cidade, mesmo às suas custas. Ele entra em disputas por influência, batalhas por território com outras igrejas vizinhas. E obviamente é apresentado de certa forma como o grande cristianizador do campo. Então ele viaja pelo interior, onde se esforça para garantir que a influência da Igreja de Arles seja consolidada. Ele profere sermões que espera que sejam recopiados e relidos. E assim seu legado depois de sua morte é consolidado por seus mosteiros em Arles. Temos uma vida, uma hagiografia, sobre e ele e ele nos deixou um corpus de sermões, que não foram aceitos sem controvérsias. Esse corpus foi editado por Morin, o que é um fantástico trabalho de filologia. Houve quem dissesse: podemos realmente ter certeza de que tudo isso é obra de Cesário? É claro que sua obra se tornou muito interessante para os carolíngios, que realmente gostaram de sua linha dura. Outros sermões de um período semelhante, se pegarmos a coleção do Eusébio Galicano, seguem uma linha um pouco diferente. É muito mais sobre consenso e comunidade. Então, podemos ver que a linha que Cesário adota sobre o comportamento das pessoas e sobre a cultura popular não é a única possível. Ainda assim, para mim, seus sermões realmente forneceram um caminho maravilhoso, porque ele tem sermões contra as coisas que se tornaram o assunto do meu estudo: fofocar, comemorar as calendas de janeiro, conversar, conversar na igreja, essas coisas. Certamente, temos que nos utilizar de várias estratégias para ler esses sermões e tirar proveito deles, mas eles constituem, de fato, uma variedade surpreendentemente rica de documentação textual.
Seu livro aborda uma grande variedade de tópicos, mostra que a cultura popular não pode ser entendida fora da própria esfera das relações entre diferentes grupos sociais. Dinâmicas de apropriação ou criação, adaptação e resistência. Essas são encontradas na gênese de uma forma de cristianismo popular e nas festividades das Calendas de Janeiro. Tem algo mais que você gostaria de acrescentar?
Acho que você faz um trabalho realmente fantástico ao resumir do que se trata o livro. Tenho refletido sobre algumas dessas questões ultimamente, desde que o livro foi publicado, em particular, as de apropriação, criatividade e resistência em relação às práticas materiais e rituais em resposta ao meio ambiente e, de fato, à crise climática, que enfrentamos na atualidade. Acho que isso é algo que me interessa cada vez mais, bem como continuar a olhar para essa questão. Você mencionou o cristianismo popular. A religião popular é uma espécie de palavrão para muitos estudiosos por boas razões nos dias de hoje. Mas acho que há muito mais que pode ser percebido aqui numa tentativa de identificar especificamente a agência subalterna ao olhar para as práticas religiosas em um nível muito mais detalhado.
Para concluir, quais são as perspectivas para o estudo da cultura popular na Antiguidade nos próximos anos?
Obviamente, espero que estejam em alta. Há muitos grandes estudiosos, inclusive no Brasil, trabalhando nessas áreas. Acho que a Antiguidade Tardia sempre será um campo particularmente fértil para se olhar, porque uma das razões pelas quais ela é tão rica é porque temos justamente a elite se interessando pelas atividades dos subalternos, o que permite que eles sejam colocados em evidência e possamos ver esse tipo de práticas de mudança, mas acho que há um interesse mais amplo. Aqui em Edimburgo, meus colegas Mirko Canevaro e David Lewis receberam uma verba do Conselho Europeu de Pesquisa para analisar o papel da luta de classes na formação da democracia na Grécia Antiga, o que acho que é um sinal muito bom de que [o conceito de] classe está de volta. Ela esteve desaparecida na História Antiga anglófona e, portanto, espero que haja alguma cultura popular nesse projeto. Estou ansiosa para ver isso em ação. Deve-se afirmar que a História é uma parte das humanidades e as humanidades estão muito ameaçadas nas universidades no Reino Unido e em outros lugares e todos nós realmente teremos um papel particularmente importante de deixar claro o valor do que fazemos. Mas sim, eu estou pronta para o desafio, assim espero.
Entrevista, transcrição e tradução: Pedro Benedetti
Roteiro: Pedro Benedetti e Marcio Monteneri
Edição de vídeo e revisão: Pedro Benedetti e Julio Cesar Magalhães de Oliveira