O que significava viver numa vila de trabalhadores numa cidade do Egito antigo? Podemos supor que a experiência da casa para esses trabalhadores era restrita ao seu espaço interno, da porta para dentro? E que contribuição a Arqueologia tem a nos oferecer para compreender as experiências subalternas nessa sociedade antiga? Thais Rocha da Silva, professora de História Antiga na Universidade Federal de Minas Gerais, apresentou em junho deste ano uma palestra na USP sobre "As habitações subalternas no Egito Antigo e o desenvolvimento de comunidades" como parte do ciclo de atividades do GSPPA e, nesta entrevista, oferece algumas respostas a essas questões. Thais Rocha desenvolveu em seu doutorado uma pesquisa sobre a vila de trabalhadores de Amarna, a capital construída pelo faraó "herege" Akhenaton e abandonada logo após sua morte em 1332 a.C. Doutora em Egiptologia pela Universidade de Oxford e Research Fellow no Harris Manchester College na mesma universidade, ela também foi pós-doutoranda no Departamento de História da USP de 2020 a 2024. Ela participa do projeto de escavações em Amarna desde 2017 e coordena, com a profa. Linda Hulin (da Universidade de Oxford), o Being Egyptian Project. Por ocasião de sua palestra na USP, Thais Rocha falou ao Blog sobre sua trajetória de pesquisa, seus projetos atuais, o tema de sua palestra e o futuro da Egiptologia.
Em seu doutorado em Oxford, você buscou investigar a experiência de vida dos habitantes e frequentadores da vila de trabalhadores de Amarna, analisando desde os palcos de interação social até a construção da privacidade. Você poderia nos contar sobre sua trajetória acadêmica e como você chegou a esse tema de pesquisa?
Eu cheguei a esse tema quase por acaso. Quando fiz o mestrado aqui no Departamento de Letras Orientais na USP, eu estava interessada em entender as relações de gênero. Queria saber como as mulheres egípcias eram vistas pela documentação e o tipo de documento que mais se aproximava das mulheres. Eu queria estudar contatos culturais também e então fui para o período ptolomaico, que é o período da dominação grega no Egito. Nesse processo, ao selecionar as fontes, eu escolhi as cartas, cartas escritas para mulheres e pelas mulheres. Me pareceu na época um tipo de documentação que dava a sensação de estar muito perto das pessoas de verdade. Isso é uma coisa que sempre gostei. Eu sempre quis estudar Egito. Entrei na graduação em História para estudar o Egito e na época não tinha nada. Então eu vi muita coisa sobre Grécia e fiz minha iniciação científica no Museu de Arqueologia (MAE) aqui da USP sobre a documentação funerária na Ilha de Chipre, estudando os contatos com o Mediterrâneo e o Egito.
Quando fui para esse tema do mestrado, aconteceu uma coisa muito interessante porque existia um pressuposto, uma informação muito frequente na área da historiografia e nas fontes também, que dizia que as mulheres escreviam e comandavam as casas. Elas tinham funcionários que, muitas vezes, podiam escrever por elas, elas ditavam as cartas, mas algumas mulheres eram letradas. Nesse período, temos cartas tanto em grego como em demótico, que é uma variante da escrita hieroglífica, e eu falei: bom, então o que é essa casa egípcia? Eu preciso dar o contexto da produção e da circulação desse material e não tinha informação. Fiquei muito surpresa, no final do mestrado, que apesar do pressuposto de que existia um espaço privado para mulheres, a gente não tinha nenhuma informação sobre o que eram essas casas egípcias, como elas eram. [Esse pressuposto] constituía uma informação muito enviesada pela documentação grega, que mostrava um tipo de habitação, um tipo de comportamento, de relações sociais, que vinha muito por influência macedônia. Mas a gente não tinha quase acesso a essas informações no Egito, o que é interessante porque temos muitos assentamentos no Egito. Então, pensei, bom, esse é um bom tema de investigação para o doutorado.
E teve outro elemento interessante que eu sempre gosto de pontuar: meu marido [o antropólogo Juliano Spyer] foi fazer trabalho de campo, enquanto eu estava fazendo doutorado na Inglaterra. O trabalho de campo dele era em uma região da periferia de Salvador e ficamos quase dois anos morando nessa comunidade, uma comunidade trabalhadora. É uma região da Estrada do Coco, que abriga os trabalhadores do resort para grandes empresas, para as elites de São Paulo, do Sul, do resto do Brasil que vão a Salvador. Tivemos a oportunidade de viver numa região muito semelhante ao que encontramos nas descrições egípcias sobre as vilas trabalhadoras, embora, claro, com todos os poréns e anacronismos, mas tinha esse elemento de uma comunidade trabalhadora, de um ritmo que a vila tinha por conta desses hotéis durante o período de verão, ou o período de inverno aqui em São Paulo, quando as pessoas vão para o Nordeste nas férias. Foi uma experiência muito importante para formular as perguntas da minha pesquisa de doutoramento. Eu passei a olhar a documentação egípcia de uma perspectiva muito mais interessante, muito mais rica do que eu tinha anteriormente. Foi quase uma experiência etnográfica. Eu fui assistente de pesquisa, fiz entrevistas, transcrevi, participei efetivamente do trabalho de campo e isso me deu muito instrumental, inclusive teórico, para depois fazer o estudo dos assentamentos egípcios.
Recentemente você tem questionado a unidade doméstica fechada com o modelo analítico para compreensão da vida cotidiana na cidade e vilarejos na Antiguidade. Isso pode nos levar a novas possibilidades de análise sobre a formação da comunidade no antigo Egito. Como pretende abordar esse tema na sua palestra?
Acho que essa foi a grande virada de chave do meu doutorado e eu gosto de trazer isso para a pesquisa atual porque oferece a possibilidade de pensar a vida das pessoas, de fato, de uma perspectiva muito próxima. A possibilidade de estudar o espaço doméstico dá acesso a uma maneira de viver que a gente não encontra nas outras fontes arqueológicas. Acho que nisso a Egiptologia tem um viés muito carregado, porque a disciplina chegou para a gente principalmente pela documentação funerária. Eu sempre digo para os meus sobrinhos que eu não estudo nem múmia, nem pirâmide e eles ficam muito chateados [risos]. Não tenho nada contra os colegas que fazem isso e trabalham com arqueologia funerária, muito pelo contrário. Acho que esse é um viés importantíssimo, fundamental, mas acho que a gente tem outra visão vendo o espaço doméstico.
A ideia de olhar a casa no Egito tem um elemento importante que é o clima da região onde essa civilização está localizada. Não é uma região em que você passe a maior parte do tempo cheio de cobertores, com aquecedor ligado. Ao contrário, é uma região extremamente quente. No verão tem temperaturas altíssimas e você depende muito dos ventos do norte, da proximidade com o Nilo e tudo o mais. Então, existiu um processo de adaptação da vida cotidiana, se é que a gente pode chamar assim, para esse tipo de ambiente. As pessoas não passavam a maior parte do tempo trancafiadas em casa como acontece na Europa. A experiência de viver do lado de fora é muito mais real em algumas situações. Por exemplo, nessa região da Bahia onde ficamos, tinha uma coisa muito interessante. Você tinha um movimento enorme das pessoas de manhã, porque elas estavam indo para o trabalho, muito semelhante ao que a gente vê no Egito, hoje ainda, onde o sol mal nasceu e as pessoas já estão se mobilizando para levar os animais para o rio, indo para as lavouras, para fazer suas atividades. Na hora do almoço, ou próximo do meio-dia, o sol é muito quente. Na Bahia, a gente tinha um silêncio absurdo entre meio dia, duas, três da tarde porque ninguém suportava ficar do lado de fora. As pessoas iam para dentro de casa e depois, baixando o sol, a vida retomava: as ruas são ocupadas, as pessoas se sentam na frente das casas, vêm as crianças brincando, tem a dinâmica das fofocas dos vizinhos, como a comunidade se comunica sem falar. E esse é um fenômeno que a gente observa em vários países, não é só no Brasil. A gente observa isso no Egito, nas vilas rurais ainda hoje. Esse é um modelo de comparação com as fontes arqueológicas que nos permite pensar esse tipo de vida fora da casa. E acho que o fundamental é questionar o modelo teórico que estabeleceu que a vida doméstica, a experiência doméstica, é uma experiência dentro de quatro paredes. Esse é o modelo europeu, vitoriano, do século XIX e sabemos que nem todo mundo vivia assim. Outro ponto que eu acho fundamental no caso da Egiptologia e da Arqueologia também, de modo geral, é pensar qual é a definição de casa que estamos usando. Será que as pessoas chamam de residência a mesma coisa? Se pensarmos só a civilização ocidental, por exemplo, quantos modelos de residência existem? Temos residência estudantil, os próprios bordéis, que são residências, com uma ocupação muito muito pontual, temos asilos, orfanatos, hospícios, hotéis. Então, são lugares que as pessoas vão se abrigar, mas tem realidade que faz muito diferente. É muito complicado projetar essas generalizações para as fontes do passado a partir do momento que você questiona o modelo teórico-metodológico que você projeta. O que eu estou chamando de dentro e de fora? O que eu estou chamando de casa? Se você olha para a fonte arqueológica com um pouco mais de ar fresco, acho que a gente tem a oportunidade de ver outras coisas, que até então não foram apresentadas.
Você tem se interessado pela questão de gênero dentro da nova compreensão do espaço doméstico no Egito Antigo. Como a Arqueologia pode nos ajudar a compreender as relações de gênero nesse âmbito?
Essa é uma grande questão. Eu costumo dizer que esse é um projeto de vida, não de pesquisa. Eu abandonei o estudo de gênero no doutorado porque ia ser uma pesquisa com volume. Eu precisaria de muito mais tempo, então me dediquei realmente à ideia de privacidade, à experiência sensorial, ao que define a casa. E joguei o gênero para depois. Eu vou voltar para esses temas depois, que era o tema original do mestrado. Acho que a Arqueologia tem muito a dizer sobre o estudo de gênero. O principal ponto é pensar que não podemos tratar a cultura material como as pessoas, no sentido de equacionar as duas coisas. Você vê um espelho e crê que aquilo é um objeto feminino, ou uma espada e aquilo é um objeto masculino. A gente atribui gênero a priori, para objetos, para espaços. Esse é um tema que a Arqueologia, as arqueólogas feministas vêm discutindo há bastante tempo e com avanços bastante expressivos. Eu diria que hoje o mais importante é a gente pensar o gênero como método. Acho que no Brasil temos uma realidade complicada porque quando a gente fala de gênero as pessoas automaticamente pensam em mulheres, e o gênero não é mulher, é um marcador da diferença social que você precisa entender em um aspecto relacional. Se a gente fala de mulheres, a gente precisa falar de homens também. E sempre no plural: você não tem uma experiencia universal feminina, ou uma experiencia universal masculina e a gente precisa trazer essas complexidades para a mesa. Hoje, o trabalho da arqueologia de gênero vem muito menos no esforço de dizer verdades e muito mais fazendo estudos de casos muito pontuais, mostrando essa complexidade. E dentro disso que a gente está chamando de complexidade é importante pensar, por exemplo, que experiências femininas a gente está trazendo? Pensando no espaço doméstico, que mulheres que estão ali? São crianças? São meninas? São mulheres idosas? Elas são todas do mesmo grupo social? Elas são todas da mesma etnia? Se a gente vai pensar em relação aos homens, quem são os homens que estão associados àquela casa? A gente sempre imagina a mulher tomando conta do espaço doméstico, limpando a casa, etc., mas você tem homens que estão em uma série de outras categorias, idosos, com limitação física, que estão ocupando aquele espaço e também realizando atividades. Então, acho que gênero traz a ideia hoje dessa complexidade, mostra essa complexidade.
Em um segundo momento, o que é fundamental é não investir tanto tempo em pensar nas definições de gênero daquela sociedade, o que é uma coisa que a gente, como historiador, praticamente não vai atingir. Uma perspectiva êmica sobre o gênero é muito difícil, inclusive porque dependendo da fonte que você olha, você tem uma visão de gênero muito específica daquele grupo social. Eu acho que o investimento que devemos fazer hoje é pensar: o que o gênero faz? Como esse marcador social de diferenças entre homens e mulheres organiza certas relações sociais no espaço doméstico, no contexto funerário, nas estelas egípcias, por exemplo, nos templos? Como é que esses marcadores sociais organizam inclusive o mundo divino? A gente tem relações de gênero muito marcadas no mundo divino egípcio. Como essas coisas estão apresentadas ali, na realeza, nos grupos de subalternos? Eu acho que isso é o mais interessante a se pensar. E eu falo isso, não porque eu tive uma ideia brilhante, mas porque as arqueólogas feministas e de gênero trazem essa discussão que é pensar o que o gênero faz e não o que ele é para aquelas sociedades. Aí eu acho que a gente ganha um instrumental efetivo para pensar essas dinâmicas das relações sociais.
Sobre a experiência dos subalternos, o seu interesse na vida cotidiana dos trabalhadores a levou a integrar importantes projetos como o Amarna Project e o Being Egyptian Project. Qual a natureza desses projetos e como eles nos ajudam a compreender a experiência dos subalternos no Egito?
Eu vou falar primeiro sobre os projetos. O Amarna Project é um projeto dirigido pelo Barry Kemp há mais de quarenta anos. Ele faleceu agora faz pouco tempo e escavava Amarna desde a década de 1970. Barry tinha uma agenda muito especifica que era entender a malha urbana, que a gente pode chamar em certa medida de espaço urbano do Egito. Ele tinha um interesse muito genuíno pela vida das pessoas comuns. O Akhenaton, o faraó, é, claro, importante, mas ele estava de fato interessado nessas relações sociais das pessoas comuns e principalmente nessa relação das pessoas comuns com a administração egípcia. Como o que a gente chamaria de "Estado" egípcio impactava a vida dessas pessoas? Então, Amarna, por exemplo, é uma cidade parcialmente planejada com alguns prédios administrativos, o templo, e depois se desenvolve quase que organicamente pelas pessoas que constroem suas casas ali. Eu sempre digo para as pessoas que eu nunca quis estudar Amarna, e essa é uma verdade. Eu nunca tive o menor interesse pelo Akhenaton, acho o período chato, desculpe quem o estuda [risos]. O meu interesse era falar da vida das pessoas, das mulheres, enfim. E quando apresentei o projeto sobre espaço doméstico, eu me lembro de um colega, o curador do Ashmolean Museum, em Oxford, que me disse: “Você precisa estudar a vila de trabalhadores em Amarna”. Eu falei: não, eu não quero Amarna, eu quero trabalhar com Deir el-Medina e comparar com outros assentamentos. Aí ele falou: “Olha, esse material nunca foi estudado direito”. E nesse processo, nesse período que eu fiquei na Inglaterra, eu conheci a Anna Stevens, que é vice-diretora do projeto e que fez parte de um curso de arqueólogos, do qual eu participei como aluna. Fui conversar com ela sobre meu projeto de doutorado e ela me fez a mesma pergunta: “Por que você não incluiu Amarna?” E aí eu falei, bom eu preciso realmente repensar. Quando eu fui ver o estado das publicações e as coisas sobre a cidade, elas tinham enfoque muito econômico, que nunca me interessou, nunca gostei de história econômica. E minha orientadora me disse: “Olha, acho que aqui você tem uma oportunidade de fazer alguma coisa muito diferente porque as questões que você está trazendo para as casas, para os assentamentos precisam chegar nesse material”. E foi assim que o projeto tomou um rumo muito diferente e eu fui para Amarna participar com a equipe da escavação do cemitério do norte, que é um cemitério de crianças, ou adultos muito jovens, um cemitério que a gente chamaria, muito genericamente, de grupos de não-elite, cemitério de gente pobre. Ali eu tive a oportunidade de visitar a cidade, as ruínas da cidade, visitei a vila de trabalhadores e entendi que aquilo precisava e merecia ser investigado. Foi aí que Amarna chegou. Anna fazia uma brincadeira assim: “Será que você consegue dar uma palestra sobre o seu projeto sem falar do Akhenaton?” Porque não é todo mundo que trabalha com Amarna que se interessa pela questão religiosa, pela reforma armaniana, embora isso evidentemente tenha um impacto nas organizações das relações sociais da cidade.
Quando terminei o doutorado, eu estava para voltar para o Brasil e minha orientadora, Linda Hulin, que é do departamento School of Archaeology, ela me fez uma proposta para a gente continuar trabalhando juntas. Ela é uma pessoa que também tem interesse nos estudos sobre o espaço doméstico e me disse: “Eu acho que o modelo que você desenvolveu de análise para as comunidades, as casas, a gente precisa aplicar para outros assentamentos”. Precisávamos justamente pensar a questão sensorial, a questão do que a gente chamaria muito entre aspas de "privacidade" ou de "comunidade", esses termos precisam todos serem problematizados. E ela disse: “A gente pode fazer um projeto de colaboração”. Foi então que apresentei o projeto no Departamento História [da USP], para o professor Marcelo Rede, que é o meu supervisor de pós-doutorado, e sinalizei que haveria uma colaboração com Oxford, com a participação da Linda e que a gente a partir daí faria uma série de atividades, de seminários, publicações. Foi assim que o Being Egyptian começou. Eu sempre tive uma relação muito boa com a Egypt Exploration Society, que é uma instituição não acadêmica, uma instituição de caridade, uma Charity. A Egypt Exploration Society financiou e financia muitas expedições, muito trabalho de campo para a pesquisa no Egito. Eles têm a participação de pessoas que não são acadêmicas. A primeira vez que fui para a Inglaterra, em 2010, eu entrei em contato com eles. Eles têm uma biblioteca excelente, dão cursos, fazem muitas atividades em parceria com os acadêmicos. A proposta é, justamente, divulgar o trabalho que é feito na disciplina, no campo para as pessoas que não são especialistas, oferecendo oportunidades para estudantes, para gente que está começando e também para acadêmicos que já são estabelecidos, que têm projetos de longa data. Então, a gente fez uma parceria, eu, a Linda e o pessoal da EES para que eles pudessem promover o nosso projeto e fizemos uma série de palestras em 2021 do Being Egyptian. A ideia desse projeto é pensar, nesse modelo de estudo do espaço doméstico, o que acontece com os egípcios quando eles vão morar no estrangeiro. Eles levam suas tradições? Eles levam a sua maneira de cozinhar? A sua forma de vestir? Eles estão sob a autoridade do faraó, porque essa mão de obra é facilmente deslocada. A ideia era problematizar a questão da influência: em que medida existe uma porosidade do espaço doméstico para absorver tradições locais? Você, por exemplo, pode usar a mesma cerâmica local, mas cozinhar de um jeito diferente. Como é que esses grupos de pessoas se adaptam no espaço doméstico pela perspectiva da cultura material, que estamos chamando de adaptação, ou que outros pesquisadores chamam de negociação? Como é que se acomodam essas tradições? A gente pode ver agências variadas em jogo. Os grupos que habitam aquela região levando as suas tradições impactam as tradições locais também? Esse é um projeto ambicioso, com vários pesquisadores e que virou uma espécie de rede de colaborações. A primeira etapa dele foi uma série de palestras e seminários, cujos vídeos estão sendo disponibilizados no YouTube. Como projeto que investiga muitas regiões diferentes a gente precisa de um tempo de maturação, inclusive porque isso implica em acesso a dados de escavação, de relatórios, que muitas vezes não são disponibilizados, coisas que ainda não foram publicadas. Então, a gente negocia isso com outros institutos, com outros pesquisadores e tem sido muito interessante porque a partir do momento que a gente começou a fazer esse projeto a gente ficou muito surpresa com a quantidade de gente interessada em pensar o espaço doméstico e gente que vinha trabalhando com isso de forma muito pontual e quase silenciosa.
Eu acho que o estudo do dos grupos do subalternos no Egito é uma coisa que está para ser feita ainda. Eu diria que 90% da documentação acessível para nós na Egiptologia é de grupos privilegiados e por algumas razões. Primeiro porque a disciplina privilegiou imensamente os textos e a gente sabe que a quantidade de pessoas que eram letradas era muito pequena. Alguns dizem, que é por volta de 1%. Então, é muito pouca gente mesmo. A maior parte dessa documentação também vem do contexto funerário, dos contextos religiosos, com características bastante privilegiadas. Uma tumba decorada, uma tumba de pedra, um caixão decorado, as pessoas precisavam ter condições e poder aquisitivo para conseguir adquirir um material desses. E mais ainda, as pessoas precisavam ser favorecidas pela administração e pelo rei para terem acesso a esse tipo de coisa. Então existe aí uma camada enorme, um iceberg todo para a gente investigar e que precisaria de um tratamento teórico-metodológico muito melhor sobre o que a gente chama de “não-elite”. Então, o que significa você falar que um grupo é um grupo de “não-elite”, pensando que as pessoas têm etnias diferentes, gênero diferente, condições sociais muito distintas dentro dessa massa que a gente está chamando de “não-elite”? A gente se aproxima de algumas coisas por alguns textos e por inferências que a gente faz. A Sátira dos ofícios é um texto famoso que fala dos vários tipos de trabalho e a gente consegue chegar a algumas categorias de trabalhadores por ali. A gente sabe da representação de alguns grupos na própria decoração funerária: subalternos, escravos, prisioneiros de guerra, e por aí vai, nos templos também. Mas são representações ainda em contextos muito idealizados. Então, o que a gente tem hoje, que se aproxima muito, são esses cemitérios de grupos de não-elite. O Amarna Project tem aí um mérito muito grande na escavação desses cemitérios, porque a gente inclusive sabe quem morou ali, de onde essas pessoas vieram, o que elas fizeram, em que condições que elas viveram.
Mas precisamos de um tratamento teórico-metodológico melhor. O que é muito interessante é que, por exemplo, essas vilas trabalhadoras, como a de Amarna, Deir el Medina, não são de grupos subalternos. E aí que eu acho que veio uma surpresa interessante, porque quando a gente pensa na vila trabalhadora, a gente vem com um viés muito marxista: Revolução Industrial, século XIX, exploração do trabalhador. Mas no Egito você tem outras relações, a começar que essas vilas elas eram mantidas pelo Estado. Os trabalhadores ali recebiam suprimentos com frequência, de água, alimentos, ferramentas. Eles viviam em uma condição muito privilegiada em relação a outros grupos. E a gente precisaria olhar hoje uma série de outras habitações de assentamentos e outras áreas do Egito não necessariamente associadas a essas vilas planejadas pelo Estado. O problema é como a gente acessa esse material, como é que chega nesses assentamentos e, enfim, como esse processo de escavação também precisa ser publicado, compartilhado, que é um outro problema que a gente tem na disciplina.
As tendências da Egiptologia mais recentes têm se aproximado de uma corrente mais pós-colonialista, afastando-se dos antigos pressuposto que dominaram a disciplina desde o século XIX. Isso certamente teve um impacto sobretudo no estudo do ambiente doméstico e dos grupos subalternos, não? Quais são as possibilidades desse tipo de pesquisa na Egiptologia hoje e quais são as perspectivas para o futuro?
Essa é uma pergunta muito importante para a disciplina hoje. Acho que a gente vem se aproximando dos estudos pós-coloniais, decoloniais. Eu acho que a disciplina enfrenta pela primeira vez o passado colonial, das diversas formas. Existe aí uma pauta para a questão da devolução dos objetos. Como as práticas arqueológicas são feitas? A gente sabe que o Egito fica com todo o material, nada sai de lá. No entanto, o treinamento ainda é primordialmente oferecido pelas universidades europeias e norte-americanas. Eu acho que a minha única preocupação com essa pauta decolonial e pós-colonial é que ao fazer a crítica da disciplina, que precisa ser feita e eu acho importante enfatizar como a gente trouxe vieses racistas, misóginos, enfim, e isso está muito presente na literatura ao longo do século XX, mas a gente precisa lembrar também que a origem da disciplina é essa. É uma disciplina que começa no século XIX, assim como é a Arqueologia, a Assiriologia, a própria Geografia. A minha preocupação é que ao fazer a crítica decolonial a gente promova o desmantelamento absoluto disso. Eu não tenho resposta para isso, mas a gente vive uma crise nas Humanidades, tanto aqui no Brasil como na Europa, que é o fechamento de departamentos, a redução de grupos que trabalham com História Antiga, com a redução de financiamento para as pesquisas. Então, eu acho que a cautela que a gente precisa ter é como a gente faz uma crítica e não dê um tiro no pé? Em que a gente garanta condições de trabalho, garanta condições de continuidade da pesquisa, de financiamento, promovendo uma outra maneira de olhar para isso.
Uma outra coisa que eu acho também preocupante é que muitas vezes essas pautas são trazidas de forma bastante panfletária por pessoas que desconhecem, por exemplo, a realidade no Egito, no Sudão. Pessoas que não têm contato com essas regiões, que não falam árabe. É muito complicado a gente falar disso com uma distância geográfica, cultural, social. Acho que é importante a gente ter cautela, acho que é importante fazer a crítica, sim, e a crítica ela deve ser feita na produção de conhecimento. Flinders Petrie, por exemplo, era uma pessoa super eugenista, mas que trouxe contribuições importantes para a disciplina. Então, como você critica Flinders Petrie e vai além disso, além da crítica? Como é que a gente propõe coisas além disso? Eu acho que o estudo do espaço doméstico tem aí uma vantagem, porque precisa partir do princípio que a forma de habitar, a forma de viver daquelas pessoas não é igual à nossa e você precisa questionar esses pressupostos para começar a olhar o material arqueológico. Então, isso implica em rever as hierarquias sociais, a forma como você pensa relações de homens e mulheres, as relações com próprio "Estado" egípcio, com a própria administração faraônica. Eu acho que ali existe a possibilidade de você promover, enfim, uma leitura da sociedade egípcia que traga outros vieses. Existem colegas fazendo isso hoje para documentação funerária, um trabalho bastante importante que acho que traz luz a esse tipo de debate. E volto a dizer, eu acho que é muito importante a crítica pós-colonial, decolonial, a gente precisa assumir que a gente está numa disciplina racista, misógina, a começar pela quantidade de mulheres que estão nas posições, nos principais professorship na Europa, e quantas são diretoras de escavações? Enfim, a gente poderia ter uma lista enorme. Então, existem problemas estruturais que precisam ser discutidos, mas acho que a gente precisa tomar cuidado para não bombardear o campo todo, porque aí eu acho que a gente cria um problema para a gente, para as futuras gerações de pesquisadores, para os próprios alunos também. Eu sou a favor do trabalho de formiguinha.
Entrevista e transcrição: Michele Santos
Roteiro: Pedro Benedetti
Revisão: Julio Cesar Magalhães de Oliveira
Fotos: Julio Cesar Magalhães de Oliveira
Comments