Por Filipe N. Silva, Doutorando em História Cultural, Universidade Estadual de Campinas.
De acordo com um conhecido versículo narrado no evangelho de João (19. 19-22) sobre a execução de Jesus, Pilatos teria ordenado a feitura de um letreiro trilíngue (latim, grego e hebraico) que deveria ser afixado sobre a cruz. Se, por um lado, pode-se presumir que o seu objetivo era comunicar o maior número possível de pessoas sobre quem era o indivíduo supliciado no madeiro, por outro lado, também se pode reconhecer que o uso das inscrições (em todo tipo de situação!) constituía uma importante ferramenta de comunicação na vida quotidiana dos habitantes do Império Romano.
Devido a sua ampla difusão no Mediterrâneo Antigo, as inscrições nos revelam práticas triviais, religiosas, alimentares, econômicas, militares e laborais de pessoas pertencentes a todos os segmentos sociais. Considerada uma disciplina auxiliar da História, a epigrafia se dedica à leitura, datação, interpretação e descrição das inscrições registradas sobre materiais duráveis, tais como os monumentos funerários, telhas, vasos cerâmicos e até fragmentos metálicos. A análise dos nomes, a consideração do suporte material e a observação estilística da inscrição constituem as partes básicas do processo de transformação do material epigráfico em fonte histórica.
Para o estudo da escravidão no Império Romano, em particular, a epigrafia pode ser considerada imprescindível, visto que a literatura antiga foi produzida por indivíduos detentores de pleno direito. Apesar de seu inegável valor histórico, a maior parte dessa tradição textual apresenta uma perspectiva favorável à dominação e, não raro, reproduz considerações negativas e estereótipos sobre a suposta ‘natureza servil’ dos indivíduos reduzidos à servidão. Nesse sentido, as inscrições, registradas em epitáfios, estátuas e monumentos associados à população servil, nos permitem compreender aspectos complexos da vida de escravos/as e libertos/as e que figuram de maneira marginal na documentação literária. Essa constatação é patente, por exemplo, quando observamos a atuação dos alforriados na economia romana antiga.
Oriundo de Roma ou das províncias do Império, o registro epigráfico nos conduz à constatação de que os libertos e as libertas foram protagonistas nas oficinas de trabalho manual e no comércio das cidades romanas. A experiência prévia adquirida à frente dos negócios do proprietário escravista, bem como o acúmulo e reconversão de suas economias às atividades comerciais, teria propiciado o engajamento de mulheres e homens alforriados em um amplo e lucrativo repertório comercial: em um de seus principais livros,The Social and Economic History of the Roman Empire(1926), o historiador Mikhail Rostovtzeff (1870-1952), chegou a comparar os libertos ricos do Império Romano aos investidores do mundo capitalista. O padeiro Marcos Virgílio Eurísaces, evidenciado como liberto pela maioria dos estudiosos, seria um exemplo de liberto enriquecido pelo comércio:
[Est hoc monume]ntum Marcei Vergilei Eurysacis pistoris redemptoris apparet //
Est hoc mon<i=u>mentum Margei Vergili Eurysacis/ pistoris redemptoris apparet //
Est hoc monumentum Marci Vergili Eurysac[is] (CIL 06, 01958A)
Tradução: Este é o monumento de Marcos Virgílio Eurísaces, padeiro e fornecedor. É evidente//
Este é o monumento de Marcos Virgílio Eurísaces, padeiro e fornecedor. É evidente //
Este é o monumento de Marcos Virgílio Eurísaces.
As inscrições de tipo funerário, sobretudo, registraram parte significativa do heterogêneo universo laboral experimentado pelos libertos no Império Romano. Ainda que nem todos os libertos tenham alcançado o sucesso financeiro de Eurísaces, uma característica epigráfica parece aproximar a experiência histórica de uma boa parte dos indivíduos egressos da escravidão, fossem eles/as ricos ou não: a alusão à profissão. Além da inscrição (CIL 06, 0958A) em que se identifica como pistor/padeiro, Eurísaces também apresenta, em seu sepulcro, imagens referentes ao ofício da panificação:
Abundante nas inscrições funerárias, a referência ao trabalho permite-nos evidenciar a atuação dos alforriados nas mais variadas ocupações da vida urbana. É por meio da epigrafia que conseguimos, de algum modo, aproximar as experiências históricas da liberta Fausta (CIL, 06, 09038), de Roma, à família de libertos hispânicos (CIL, II²/7.339) que também atuava, provavelmente em um ateliê coletivo, nos afazeres da confecção e costura (sarcinatrix) da cidade de Corduba, na Baetica.
CIL 06, 09038
Fausta / Liviae l(iberta) / sarcinatrix
Tradução:
Fausta, liberta de Lívia e alfaiate.
CIL II², 7.339
M(arcus) Latinius M(arci) [l(ibertus)...] / L(ucius) Afinius L(uci) l(ibertus) Ata [---] / Latinia M(arci) l(iberta) T[...] / Demetrius fi[lius] / Latinia M(arci) l(iberta) Da[---] / Sarcinatrix [...]
Tradução:
Marcos Latínio, liberto de Marcos / Lúcio Afínio, liberto de Lúcio Ata [---] / Latínia, liberta de Marcos T [---] / Demétrio filho / Latínia, liberta de Marcos Da [---] / Alfaiates[...]
Em Emerita Augusta, a lápide da liberta Sêntia Amarante, por meio de um baixo relevo, retrata a defunta exercendo seu ofício de taberneira:
(ERAE, 163)
D(iis) M(anibus) S(acrum) / Senti(ae) Amarantis / ann(orum) XLV Senti(us)/Victor uxori/ carissimae f(aciendum) c(uravit) / cum qua vix(it) na(nos) XVII
Tradução:
Consagrado aos Deuses Manes /
À Sêntia Amarante, queridíssima esposa de quarenta e cinco anos.
Sêntio Vitor, com quem viveu por dezessete anos, ordenou a feitura [deste túmulo].
Constatada a possibilidade de uma melhor compreensão sobre os libertos e seus respectivos trabalhos nas cidades do Império Romano a partir da epigrafia, também se pode conjecturar que o frequente registro epigráfico de profissões esteja relacionado à própria origem escrava dos proponentes. Ainda que um ex-escravo pudesse obter a cidadania e até a estrutura nominal de uma pessoa nascida livre, sua identificação nas inscrições diferiria amplamente da de um indivíduo nascido livre. A ausência do nome do pai e a eventual presença do patrono que o alforriou, características à epigrafia dos libertos, atestam a permanência de sua condição servil mesmo após sua alforria. A atividade laboral poderia, neste caso, assegurar uma nova identidade social aos libertos e libertas para além do passado na escravidão?