Por Márcio Monteneri, Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo.
De acordo com Thomas Gieryn, os espaços que habitamos e frequentamos são mais que meros cenários da vida cotidiana. Casas, edifícios e recursos arquitetônicos podem aproximar ou segregar pessoas, encorajar ou inibir certas práticas e interações humanas e conferir uma forma mais estável, duradoura e restritiva às hierarquias sociais. Há algum tempo o jornal The Guardian publicou uma matéria sobre residências compartilhadas em Londres. A publicação trata de um complexo de apartamentos habitados por dois grupos de inquilinos: os que compraram 100% do imóvel e os que adquiriram apenas parte da unidade habitacional e pagam um valor mensal de aluguel e outras taxas. Esses últimos tinham o acesso negado a determinadas partes do edifício, como academias, piscinas, playgrounds e garagens. Paravam seus carros longe do prédio, entravam por uma porta secundária de frente para os trilhos de uma ferrovia e chegavam em casa pelas escadas. Enquanto isso, os proprietários dos outros imóveis desfrutavam de todas as comodidades do condomínio. Exibiam coleções de carros de passeio no estacionamento, acessavam o prédio pela entrada principal, com vista para um jardim, e subiam de elevador até o andar de seus apartamentos. Segundo o jornal, a empresa responsável pelo empreendimento negava a existência de políticas segregacionistas, mas alguns moradores viam nessas diferenças uma forma de discriminação. Fica evidente, nesse caso, que a arquitetura do local era menos acolhedora para certos grupos, ressaltava as desigualdades e dificultava a conexão entre pessoas de diferentes classes. Algo semelhante acontecia na Antiguidade romana no interior das mansões aristocráticas (domus), edifícios em que também coabitavam pessoas de diferentes estratos sociais.
Naquela época, a arquitetura das casas da elite igualmente excluía parte dos moradores. Na cidade de Óstia, no século IV d.C., os aristocratas alugavam alguns cômodos de suas casas a trabalhadores temporários, estrangeiros, libertos e outros inquilinos, mas essas pessoas não tinham acesso livre ao espaço das mansões. Os cômodos alugados geralmente ficavam restritos ao andar superior e eram acessados por entradas menores e independentes da casa principal. Além desses hóspedes, as domus recebiam muitos frequentadores diariamente, pois eram usadas para uma série de atividades políticas e econômicas dos aristocratas. Os visitantes também pareciam estar submetidos aos limites determinados pela construção. Havia entradas específicas para seu acesso e cômodos onde aguardavam para serem atendidos pelos donos. Esses ambientes eram os mais próximos da rua e os mais afastados daqueles reservados ao proprietário, seus familiares e convidados de honra. Além disso, ficavam sob a supervisão de escravos e de estátuas de divindades protetoras. Essa organização, de certo modo, demarcava os grupos socialmente inferiores e mantinha seus membros isolados dos visitantes de primeira classe. Mesmo nos espaços de uso coletivo, como os pátios das mansões, é possível notar essa separação. Esses ambientes, cujo acesso era permitido aos visitantes comuns, geralmente estavam alinhados a salas ricamente decoradas que ficavam em um nível mais alto e acomodavam o proprietário e seus aliados. Do alto desses cômodos, os aristocratas podiam se apresentar de maneira majestosa e dirigir a palavra ao público de cima para baixo. Essa estrutura que tornava um ambiente dominante em relação a outro também impunha uma distância social entre o chefe e os usuários da domus.
Embora funcionassem como instrumentos de poder e controle social nas mãos dos aristocratas, as domus eram reinventadas pelas pessoas comuns, que as utilizavam segundo seus próprios interesses e ressignificavam seu espaço. À medida que a arquitetura segregava os grupos subalternos, aproximava seus membros e facilitava a sociabilidade entre eles, conferindo-lhes maior autonomia e a possibilidade de diferentes modos de ação. É o que sugerem os grafites, textos e desenhos sulcados em algumas casas de elite.
As paredes e pisos das domus podiam ser utilizados como um veículo de comunicação. Na Casa del Menandro, uma antiga mansão da cidade de Pompeia, lê-se na parede de um corredor interno:
Tottotare iis tota uita (CIL IV, 8349)
O grafite, quando lido em latim, passa-nos a impressão de alguém que gagueja. A expressão “tottotare”, segundo Pedro Paulo Funari, inexistia na linguagem erudita e a frase pode ser traduzida como “o blá-blá-blá vai demorar muito?”. Aqui, de maneira criativa, o responsável pela intervenção parece reclamar da espera e criticar o discurso do aristocrata.
Além dos pisos e paredes, os ambientes das mansões também podiam ser apropriados de formas que fugiam ao planejamento do dono. Um grafite descoberto no pátio de uma domus de Óstia aparenta ser uma representação de um tabuleiro de jogos, semelhante a outros encontrados em Léptis Magna (atual Líbia), Carnunto (atual Áustria) e Roma. Jogos e apostas falavam diretamente à experiência de muitos plebeus ameaçados pela instabilidade e dependência econômicas. Podiam ser um modo alternativo de se obter dinheiro e subir na hierarquia social. Ainda que os aristocratas também jogassem, um tabuleiro como esse, improvisado “à faca” no chão da casa, parece ser obra de um subalterno que utilizava a estrutura da mansão à sua própria maneira.
As residências da elite romana, diferente dos condomínios de Londres, que são copropriedades, possuíam apenas um dono e funcionavam quase como uma extensão do espaço público. Os inquilinos e visitantes não tinham qualquer direito sobre o espaço, eram subordinados e dependentes dos proprietários das mansões. No entanto, em ambos os casos parece que os grupos dominantes tentam definir e estruturar limites para perpetuar as relações de dominação e subalternidade. Apesar disso, vimos que é possível transformar os edifícios em algo diferente daquilo que seus projetistas e proprietários imaginaram e, dentro dos traçados arquitetônicos, criar muitas cenas e representar diferentes realidades.