Por Thais Rocha da Silva, Pós-doutoranda na Universidade de São Paulo, Research Fellow do Harris Manchester College (Universidade de Oxford) e arqueóloga do Amarna Project.
Ao se falar do Egito, é inevitável não pensar nas múmias e pirâmides. Parece que tudo o que chega a nós dessa civilização parece se referir apenas ao mundo dos mortos, como se o Egito fosse um grande cemitério. Mas como era o Egito dos “vivos”? Suas casas e cidades? Esse Egito “dos mortos” exclui a grande maioria dos egípcios. Só um grupo muito restrito e privilegiado tinha o letramento e o status social para ser mumificado e enterrado em tumbas sofisticadas. Como viveram as pessoas comuns?
Como afirma o antropólogo inglês Daniel Miller, são as coisas banais da vida cotidiana, do mundo material, que nos informam sobre os nossos modos de viver. Novas abordagens arqueológicas sobre o antigo Egito possibilitaram acessar essa dimensão da sociedade egípcia antiga por meio de outras lentes e compreender a vida cotidiana das pessoas comuns. Pesquisas recentes sobre as antigas casas egípcias têm nos apresentado um Egito antigo menos glamourizado, mas também fascinante.
Neste post, apresento o exemplo das casas na antiga cidade de Amarna (Akhetaton), capital do Egito sob o reinado de Akhenaton (Amenhotep IV) entre 1347-1332 a.C. A cidade fica na região central do Egito, onde está a moderna Tell el-Amarna e é um exemplo importante da paisagem urbana do Egito antigo e das suas formas de habitação. O que torna Amarna especial para os pesquisadores é que ela foi erguida rapidamente e logo abandonada depois de 20 anos de ocupação. Tornou-se, assim, um registro único – uma espécie de “fotografia” da vida nesse período. Muitas outras cidades continuaram sendo habitadas e, por isso, foram sendo reconstruídas e adaptadas constantemente ao longo dos séculos.
Os arqueólogos modernos dividiram a antiga capital em vizinhanças e assentamentos distintos. Essa divisão foi baseada em tipos e grupos de casas próximas. Dois assentamentos mais afastados da malha urbana principal, a Vila de Trabalhadores e a Vila de Pedra, estavam ligados a outras partes da cidade por uma antiga rede de estradas. Como essas ‘vilas’ estavam localizadas entre a Cidade Principal e o caminho que leva à tumba do faraó Akhenaton, alguns pesquisadores acreditam que seus moradores fossem os responsáveis pela construção das tumbas reais.
A Vila de Trabalhadores de Amarna foi um assentamento planejado e construído pelo Estado faraônico para abrigar um grupo de trabalhadores envolvidos nos projetos da realeza: 72 casas distribuídas em 5 ruas paralelas, circundadas por uma muralha de tijolos feitos com argila. Em geral, as casas tinham 3 cômodos internos térreos e, possivelmente, um andar superior, aproveitado de diversas formas. Segundo o egiptólogo Barry Kemp, diretor do Amarna Project e que escavou a Vila na década de 1980, é possível que o governo egípcio tenha definido apenas o local do assentamento e estabelecido a fundação da muralha e de algumas casas, permitindo que cada grupo terminasse sua própria habitação.
Trabalhos etnográficos recentes no Egito e no Sudão mostraram como as habitações feitas de tijolos de argila podem ser finalizadas em apenas um dia e rapidamente modificadas na sua planta original. Uma observação detalhada da planta da vila, produzida na década de 1920, revela que, apesar da aparente semelhança dos planos, nenhuma casa é idêntica à outra, o que nos mostra que os habitantes tinham liberdade para adaptar internamente as suas moradias às suas necessidades.
Por estarem afastados da Cidade Principal, os trabalhadores recebiam entregas regulares de água e suprimentos, o que pode ser comprovado pela presença de fragmentos de jarros de água quebrados, tanto nas estradas que ligavam a Cidade à Vila, como também na chamada área-zir, uma estrutura destinada a armazenar as entregas para que depois fossem distribuídas aos moradores. Uma vez que havia limitação de espaço para a expansão das casas, os moradores construíram um espaço de uso coletivo fora das muralhas. Esse espaço incluía um grande chiqueiro, uma área para queima de lixo (quarry) e capelas, onde se realizavam ritos e celebrações. A presença do Estado era marcada por uma pequena estrutura, semelhante a uma casa (X1), a qual abrigava os responsáveis pelo controle de acesso a esta comunidade.
As pessoas passavam a maior parte do tempo em espaços abertos. As atividades de produção de alimentos (preparação da farinha, fornada dos pães) e a produção de tecidos, tarefas comuns na Vila de Trabalhadores, exigiam boa ventilação e luminosidade, o que justificaria que muitas áreas das casas fossem abertas ou tivessem coberturas temporárias, como toldos ou estruturas leves de madeira, por exemplo, que não sobreviveram até os nossos dias. A colaboração entre vizinhos pode ser vista, por exemplo, pela distribuição dos equipamentos para a fabricação da farinha e dos fornos, que não existiam necessariamente em todas as casas e demandavam tempo e esforço físico.
A ausência de textos na Vila dos Trabalhadores obrigou os pesquisadores a desenvolverem metodologias específicas para o estudo dessas casas e de tudo o que envolvia a vida doméstica. Ainda assim, sabemos pouco sobre seus moradores. Além da vila e da cidade terem sido abandonadas, o sítio arqueológico foi sistematicamente saqueado, o que dificulta obtermos informações mais precisas sobre essas habitações.
As estruturas arquitetônicas e os artefatos das casas da Vila dos Trabalhadores nos mostram uma complexidade da vida doméstica que não pode ser explicada usando o modelo da casa de bonecas, em que cada cômodo tinha uma função específica. Os espaços de trabalho e de socialização se sobrepunham, eram adaptados para diferentes finalidades dependendo da hora do dia e de quem estivesse em casa. O material disponível na Vila de Trabalhadores nos mostra que o espaço doméstico não era limitado às quatro paredes das casas, mas se estendia às ruas e à área fora da muralha da vila. Apesar das casas pequenas, eles eram ainda grupos privilegiados dentro da sociedade egípcia, sobretudo pelo tipo de vida que levavam. Eram uma mão de obra especializada, que poderia ser recrutada pelo governo e então se mudar para uma outra comunidade.
O estudo da Vila de Trabalhadores pode nos aproximar de um tipo de documentação que foi por muito tempo negligenciada pela Egiptologia. É possível ver na arqueologia das casas as ações de grupos e indivíduos, estratégias de adaptação a diferentes ambientes, soluções criativas para manutenção das necessidades diárias que os textos não trazem e que não foram levadas para a outra vida nas tumbas. Esse tipo de documentação nos ajuda a chegar mais perto da vida dos trabalhadores e suas famílias, ver as suas atividades e as condições em que viviam.
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