Por Jessica Brustolim, graduanda em História, Universidade de São Paulo.
Por volta de 130 da nossa era, na cidade de Mogontiacum (atual Mainz, na Alemanha), uma viúva pediu a Magna Mater que a vingasse pelos bens de seu marido:
Rogo te, domina Mater / Magna, ut tu me uindices / de bonis Flori coniugis mei. / qui me fraudavit Ulattius / Seuerus, quemadmod<um> / hoc ego auerse scribo, sic illi // omnia, quidquid agit, quidquid / aginat, omnia illi auersa fi ant. / ut sal et aqua illi eueniat. / quidquid mi abstulit de bonis / Flori coniugis mei, rogo te, / domina Mater Ma<g>na, ut tu / de eo me uindices.
“Peço-te, senhora Magna Mater, que me vingues pelos bens de Floro, meu marido, que Ulattio Severo me defraudou. Assim como eu escrevo isto de um modo hostil, que tudo, o que quer que ele faça, o que quer que ele tente, tudo dê errado para ele. Assim como o sal [derrete na] água, que isso aconteça a ele. Quaisquer que sejam os bens de Floro, meu marido, que ele tomou de mim, peço-te, senhora Magna Mater, que me vingues dele”.
Já no século III, na província da Britânia, Solino, um frequentador das termas de Bath (atual Inglaterra), teve sua túnica de banho e casaco roubados. Ele, então, pediu a Súlis Minerva que punisse o ladrão:
Deaesuliminiruesoli/ nusdononuminituoma /iestatipaxsabaearemet/ leumn<>ermitta<>mnum/ necsan..tem,eiquimihifru/ dem.ecitsiuirsifemi<.>. siseruus/ s<.>l..ernissi..eretegensistas/ s.eciesad..mplumtuumdetulerit /..beriesuiue lson sua.equi/ deg/ eiquoque xe/ mnumme /m n.. alul.um/ etrelinqu<.>.snissiad. <.>mplumtu/ umistasresretulerint.
“De Solino para a deusa Súlis Minerva. Dou para tua divindade e majestade minha túnica de banho e meu casaco. Não deixa dormir, ou ter saúde, aquele que me fez mal, seja homem ou mulher, escravo ou livre, a menos que se apresente e traga estas coisas para o teu templo ... seus filhos ou seus ... e ... aquele ... para ele também ... sono ou <saúde> ... casaco e o restante, a menos que tragam estas coisas para teu templo” (Tradução de Pedro Paulo Funari).
Contemporâneo de Solino, mas na cidade de Adrumeto, no Norte da África, um fã das corridas com cavalos invoca um “demônio qualquer” (demon quicunque) para matar os cavalos das facções verde e branca (ut equos prasini et albi crucies ocidas) e fazer com que os cocheiros (agitatores) Claro, Félix, Prímulo e Romano caiam e colidam (et agitatores Clarum et Felice et Primullum et Romanum ocidas collida).
Todos estes pedidos são exemplos de uma das práticas mais comuns da Antiguidade: as defixionum tabellae, pequenas tabuletas de maldição feitas de chumbo. De acordo com Daniel Ogden, mais de 1.600 tabuletas de maldição foram encontradas em todo o território do Império Romano, sendo que as mais antigas são datadas de c. 500 antes da nossa era.
Tabuletas de maldição dão aos pesquisadores uma visão privilegiada das pessoas comuns da Antiguidade já que, em sua maioria, foram feitas pelos próprios populares e demonstram aquilo que era importante para eles, suas emoções, paixões e a forma como lidavam com problemas e conflitos.
A tabuleta feita por Solino, por exemplo, apresenta uma formulação quase jurídica para não deixar brechas pelas quais o ladrão possa escapar, mas, ao doar os bens roubados para a deusa Súlis Minerva, ele também altera seu status jurídico, transformando um ladrão comum em um ladrão de bens sagrados, o que deveria atrair punição quase imediata por parte da deusa. Além disso, também é interessante observar quais aspectos da vida do ladrão são amaldiçoados por Solino: seu sono e sua saúde. Em um estudo de 2004, Philip Kiernan fez um levantamento das punições pedidas nas tabuletas da província da Britânia e percebeu que apenas uma pequena fração delas pedia pela morte dos malfeitores. Em todas as outras, são pedidas punições como insônia, incapacidade de comer, beber, defecar ou gerar filhos, letargia e inquietação. O autor conclui que, como todas estas punições podem ser causadas por doenças psicossomáticas, ou seja, doenças causadas por uma condição psicológica, deveria existir algum tipo de conhecimento coletivo sobre as maldições e seus efeitos.
Na tabuleta feita pela viúva de Floro é possível observar outro aspecto das tabuletas: seu uso como forma de vingança. A viúva não pede pela restituição de seus bens, mas que Ulattio Severo não consiga realizar nenhuma de suas atividades cotidianas. Novamente, a autora da defixio se esforça para não deixar brechas pelas quais Ulattio Severo possa escapar da maldição. Os dois nomes presentes nesta tabuleta também oferecem um excelente exemplo da multiplicidade de origens e status que poderiam ser encontradas em uma província romana: Floro é um nome romano bastante comum, tanto entre cidadãos livres quanto entre libertos, já Ulattio Severo, possui um nome de origem celta (Ullatius) e outro de origem romana (Severus), sugerindo a origem celta de sua família, mas, também, que ele possuía cidadania romana.
O caráter formulaico da maior parte das maldições permitia a pessoas com pouca instrução em latim escrever sua própria tabuleta, o que é demonstrado pela quantidade de erros ortográficos, abreviações incorretas, letras omitidas e o recorrente uso do latim vulgar, muito diferente da norma culta empregada pelas elites. Mas as tabuletas também permitem aos pesquisadores observar a permanência de idiomas locais após a conquista romana, como é o caso de várias tabuletas da Gália, datadas dos dois primeiros séculos da nossa era, escritas em celta.
Por fim, as chamadas “maldições de circo” apontam para a importância dos jogos para os populares do Império. No circo, as facções eram organizadas por cores e as duas principais eram os Verdes e Azuis, tendo por cores auxiliares os Brancos e Vermelhos. O autor da maldição era, possivelmente, um torcedor Azul buscando uma vantagem para sua facção. Para os fãs, ou, até mesmo, para os competidores, era muito simples, até corriqueiro, escrever uma maldição e deposita-la em túmulo de pessoas mortas de forma violenta para obter alguma vantagem sobre os oponentes.
Os romanos acreditavam no poder das tabuletas de maldição como um fato dado. Assim, não é de espantar que os populares recorressem a elas para buscar justiça, se prevenir contra malfeitos ou obter vantagens. Para aqueles sem os privilégios da elite, obter proteção ou favores divinos era uma estratégia de sobrevivência, conservada, mesmo após a ascensão do Cristianismo, na memória coletiva das classes populares por sua eficácia.