Por Julio Cesar Magalhães de Oliveira (Universidade de São Paulo) e Cyril Courrier (Aix-Marseille Université)
[A Editora Routledge acaba de publicar o livro Ancient History from Below: Subaltern Experiences and Actions in Context, organizado por Cyril Courrier e Julio Cesar Magalhães de Oliveira. O Blog apresenta a seguir um excerto (adaptado e traduzido) da introdução escrita pelos organizadores.]
Quem construiu as Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedras?
E a Babilônia várias vezes destruída –
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritavam por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
(Bertolt Brecht, “Perguntas de um trabalhador que lê”.
Tradução de Paulo César Souza, 1986)
Todos nós que tentamos escrever “história a partir de baixo” começamos com as mesmas questões básicas formuladas por Bertolt Brecht nesse poema de 1935. A mudança de atenção dos governantes para as pessoas comuns que Brecht defendia no poema ganhou espaço durante o século XX como consequência do impacto crescente dos movimentos sociais, da democratização mais ampla de nossas sociedades e da abertura gradual das próprias universidades a homens e mulheres de origens sociais bem abaixo das classes alta e média alta. Hoje, está claro que a história não é mais restrita ao relato dos "grandes feitos dos reis". No entanto, ainda é significativo notar que a maioria das “Perguntas de um trabalhador que lê” de Brecht se referia, na verdade, à História Antiga: Tebas, Babilônia, Roma imperial, a lendária Atlântida, as conquistas de Alexandre e César. A História Antiga é, de fato, particularmente suscetível a uma abordagem de cima para baixo, à tendência de ver a história pelos olhos da elite. Isso reflete não apenas a natureza de nossas fontes, mas também a identificação consciente ou inconsciente dos estudiosos modernos com as elites do mundo antigo, uma identificação que influenciou as escolhas não apenas dos historiadores, mas também dos arqueólogos e epigrafistas. No entanto, há também outra razão pela qual a História Antiga é tão proeminente no poema de Brecht. A razão é que a visão da História como um relato de grandes e célebres pessoas, eventos e realizações (ou, nas palavras de Walter Benjamin em sua Tese VII sobre o conceito de História, como uma “procissão triunfal dos conquistadores”) é uma invenção antiga e que permanece como modelo para as modernas concepções de história. O poema de Brecht pode, nesse sentido, nos levar a questionar não apenas as preferências temáticas dos historiadores, mas também a própria natureza da escrita da História.
Escrever a História Antiga "a partir de baixo" significa, no entanto, muito mais do que levar em consideração aqueles que, para repetir a fórmula de Brecht, construíram as Tebas de sete portas: as massas anônimas, as classes subalternas, as não elites. Nossa tarefa também é, na feliz expressão cunhada por Benjamin, “die Geschichte gegen den Strich zu bürsten” (“escovar a história contrapelo”, como aparece em sua Tese VII). Isso significa romper com a visão da história como uma “procissão triunfal” para resgatar os subordinados e os oprimidos (os Unterdrückten de Benjamin) do julgamento dos vencedores. Em outras palavras, como escreveu Jim Sharpe, devemos entender o grosso das populações antigas “à luz de sua própria experiência e de suas próprias reações a essa experiência.”
Há um compromisso político em nosso engajamento com o passado e acreditamos que, nesta conjuntura específica, no início da década de 2020, a “história a partir de baixo” se tornou mais urgente do que nunca. Afinal, vivemos em um mundo onde as desigualdades de poder e riqueza se intensificam continuamente. Agentes e instituições financeiras globais ditam as políticas governamentais, ignorando a vontade dos cidadãos. As políticas neoliberais de austeridade e a crescente flexibilidade das relações de trabalho minaram os sindicatos e aumentaram a precariedade dos trabalhadores. A pandemia de Covid-19 apenas expôs e agravou ainda mais uma tendência anterior de penalizar os pobres pelas crises. Em vários países, as autoridades e as forças de segurança tratam os imigrantes, as minorias étnicas ou os pobres como inimigos em potencial. A ascensão da retórica de extrema direita ameaça suprimir as vozes de mulheres, pessoas LGBTQ+, comunidades indígenas e outras minorias, enquanto os partidos políticos e os políticos tradicionais (mesmo na esquerda), tendo há muito abandonado suas bases sociais, preferem culpar os cidadãos por suas escolhas políticas erradas, ao invés de compreender suas aspirações e pontos de vista. Nesse contexto, quando promovemos uma reflexão crítica sobre como os subalternos do mundo antigo viviam e lidavam com suas situações, nós também nos opomos à tendência contemporânea de ignorar, desrespeitar ou suprimir as “vozes dos de baixo”. Quando nos recusamos a aceitar como natural, nas palavras de David Hitchcock, “a última e mais brutal das desigualdades da vida”, a desigualdade entre quem é lembrado e quem é esquecido, e tentamos entender os devedores gregos, os sem-teto urbanos, os camponeses romanos ou os escravos domésticos nos termos da vida que levaram, estamos dizendo aos nossos contemporâneos que os sofrimentos e as esperanças de cada ser humano não devem ser esquecidos, pelo menos para nós que aspiramos a um futuro diferente. Em última instância, estamos afirmando que uma sociedade realmente democrática e mais igualitária não pode ser construída a menos que todas as pessoas sejam ouvidas e melhor compreendidas. Além disso, em um momento em que a imagem mais convencional e homogênea dos mundos grego e romano é mais uma vez abraçada pela extrema direita como o fundamento da supremacia masculina branca, vale lembrar, como recentemente o fez Dan-el Padilla Peralta, que é apenas propondo uma narrativa nova e mais plural sobre a Antiguidade que a História Antiga poderá realmente se tornar libertadora.
Esse tipo de História é sem dúvida incômodo, porque não tratamos o mundo antigo como uma fuga de nossas adversidades sociais, como um refúgio de paz social. Nos capítulos de nosso livro, o leitor também não encontrará as abordagens assépticas inspiradas pela Nova Economia Institucional que se tornaram dominantes em grande parte da historiografia recente sobre o mundo antigo e que, como Kostas Vlassopoulos corretamente observou, tendem a substituir as discussões sobre escravidão, classe e exploração por relatos “puramente” econômicos de produção, troca e crescimento. Ainda que evitando as armadilhas alternativas do miserabilismo e do populismo, nosso livro segue um caminho diferente. O leitor ainda encontrará em suas páginas pequenos posseiros de terras empreendedores ou bem-sucedidos artesãos e comerciantes que se beneficiaram com o comércio florescente de prósperas cidades portuárias. Mas nós também insistimos em trazer à tona histórias de trabalhadores agrícolas subjugados, explorados e estigmatizados como bárbaros, famílias pobres trabalhadoras expulsas de suas casas por não conseguirem pagar seus aluguéis e até mesmo toda uma população urbana reduzida à fome pelas políticas e pelo interesse egoísta de seus governantes. Mesmo assim, essa história também pode ser inspiradora, pois ao estudar as estratégias, agências e solidariedades dos grupos subalternos, nós também esperamos demonstrar suas margens de liberdade, suas capacidades de resistência e o potencial de mudança social que persistem apesar das múltiplas formas de dominação e opressão.