Por Fábio Augusto Morales, Universidade Federal de Santa Catarina.
A partir do presente, não é difícil perceber erros e acertos do passado: a lista infindável de batalhas vencidas e perdidas é uma fonte rica para construirmos explicações de por que, afinal, algumas decisões dão certo, e outras não. A democracia ocupa um lugar particular nestas explicações: muitas vezes, parte-se do pressuposto que a multidão, irracional e facilmente manipulada por demagogos ambiciosos, tem a tendência a tomar as piores decisões. A base antidemocrática do argumento é evidente e parte do confortável olhar retrospectivo de uma história já desenrolada. No entanto, o presente é um tempo aberto para os sujeitos históricos, cuja ação é o fundamento mesmo da reprodução das estruturas. Assim, contra explicações fáceis, um caminho frutífero é considerar como os diferentes grupos percebem as estruturas em ação em contextos de incerteza.
Um exemplo interessante – e trágico – é o apoio do demos ateniense ao rei Mitrídates VI do Ponto contra Roma, rompendo assim uma aliança secular. Em 89/88 a.C., o filósofo aristotélico Atenion, embaixador de Mitrídates, após um vibrante discurso em que prometera o fim das dívidas, o fim da anarquia e a restauração de santuários e ginásios, é elevado pelo demos ao principal cargo da democracia à época, o de “general dos hoplitas”. Dois anos mais tarde, a cidade seria arrasada pelas tropas romanas: as fontes mencionam um banho de sangue, e as marcas dos incêndios e destruições são visíveis ainda hoje nos vestígios arqueológicos.
A cadeia dos eventos é relativamente bem conhecida. O conflito iniciara por conta da rivalidade entre os reinos do Ponto, em franca expansão sobre o Mar Negro e a Anatólia, e o reino da Bitínia, fiel aliado de Roma na região. O apoio romano à causa bitínia levou à declaração de guerra do Ponto contra Roma em 89 a.C.; Mitrídates conquista o apoio de uma série de cidades gregas do mar Egeu, que manifestam sua adesão ao Ponto ao acatarem a ordem de assassinar os italianos residentes (em sua grande maioria, mercadores) em suas muralhas: dezenas de milhares de italianos foram executados ao longo de toda Ásia Menor. Atenas não participa do massacre, mas não obstante declara apoio à causa mitridática. O momento parecia propício para a declaração de guerra contra Roma: a crescente tensão entre dois de seus principais generais – Mário e Sula – foi agravada pela rebelião, em 91 a.C., dos aliados italianos contra a liderança romana, na chamada “Guerra dos Aliados”. As tensões em Roma intensificaram a pressão econômica sobre a Ásia Menor, por meio de tributos e exploração comercial. Não estava claro nem que Roma sobreviveria aos seus conflitos internos e contíguos, quando muito ao desafio representado por Mitrídates. Entre 87 e 86 a.C., no entanto, Sula comanda a vitória sobre os “aliados”, apodera-se de Roma e inicia a ofensiva contra Mitrídates estabelecendo o cerco de Atenas. As reduzidas forças locais conseguem defender a cidade por meses, mas falhas nas muralhas permitem a invasão romana e o consequente massacre.
Não obstante, a historiografia interpretou a adesão do demos ateniense como manifestação (tardia) da demagogia e da tirania: o povo acreditou nas promessas de Atenion, rompeu uma aliança estável e sofreu com a inevitável vitória romana. Esta interpretação já estava presente nas fontes: Posidônio, historiador e filósofo contemporâneo aos eventos, ao menos nos trechos compilados dois séculos depois por Ateneu (Banquete dos Sofistas, 211G-212A), ressalta o equívoco popular: tendo sido recebido com fausto em Atenas, onde foi carregado em liteiras prateadas enquanto exibiu o retrato de Mitrídates gravado em seu anel, Atenion, filho de uma escrava egípcia e um filósofo ateniense, por meio de promessas vazias, conseguiu convencer uma multidão ávida por presentes e tomada por emoções intensas.
Recentemente, porém, a historiografia vêm rediscutindo a racionalidade da multidão e os complexos cenários geopolíticos e sociais relacionados ao episódio. A “anarquia” mencionada por Atenion provavelmente se refere à crise institucional visível na lista de arcontes epônimos: cargo tradicionalmente anual e rotativo, sem segundo mandato, foi ocupado por três anos consecutivos por Medeios do Pireu, membro da elite tradicional ateniense fortemente vinculada a Roma; o mandato inédito é visto como sintoma de tensão entre grupos pró e antirromanos, em particular as novas elites que competiam com italianos pelo comércio no Egeu. A promessa de remissão das dívidas, por sua vez, provavelmente derivava da dependência de cidadãos gregos em relação aos poderosos negotiatores italianos no mar Egeu. A restauração de ginásios e santuários, finalmente, reflete a crise na atividade construtiva ateniense após o fim do reino de Pérgamo (que se tornou província da Ásia, governada pelo Senado) e o declínio dos reinos ptolomaico e selêucida, fontes principais do evergetismo para a cidade. Roma, por seu turno, era a principal potência, mas não se comportava enquanto tal: não praticava o evergetismo como era esperado pelas cidades gregas.
Com isso em mente, como interpretar o apoio popular à causa mitridática? Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, apesar de vozes como a de Políbio (para quem o todos os acontecimentos levavam ao domínio romano) ou da historiografia do mundo helenístico, que tomou o período como antessala do império romano, a história não tem uma lógica imanente e inevitável, e as resistências aos projetos vencedores são também fundamentais para entendermos sua vitória. Em segundo lugar, para além da equação “demagogos + multidão = decisões terríveis”, precisamos considerar o complexo jogo envolvido nas tensões entre uma elite aristocrática tradicional, pró-romana, e uma nova elite comercial com laços sólidos com a Anatólia e Síria, e que via nos italianos ora parceiros, ora concorrentes no comércio mediterrânico. Tais elites tinham relações complexas com os grupos populares, tema ainda pouco explorado, mas fundamental para a equação política. Em terceiro lugar, é preciso levar em conta o papel da tradição evergética helenística como forma das cidades compreenderem e interagirem o mundo dos impérios, o que tornava a alternativa Mitridática muito mais compreensível e manejável do que a alternativa romana, com a incerteza gerada pela rotatividade republicana. Por fim, é fundamental situarmos as tensões e conflitos de uma sociedade na teia de relações com o mundo: na medida em que as decisões políticas tem potencial de redirecionar o modo como dada sociedade se integra em campos de integração mais amplos, seu sentido só pode ser recuperado tendo em vista as relações concretas que ultrapassam as muralhas da cidade. Naquele contexto, tratava-se da oposição de dois projetos de integração opostos: o projeto romano, centrado no Mediterrâneo e num império cívico (com contornos ainda incertos), e o projeto pôntico, centrado no Mar Negro e numa monarquia com pretensão universal (assentada numa tradição multissecular).
O apoio popular à causa mitridática, enfim, fazia sentido, em função da incerteza diante do projeto de integração romano. Hoje sabemos que o Mediterrâneo venceu o Mar Negro, mas entre 89 e 86 a.C., o futuro ainda não estava definido.
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