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Foto do escritorPedro Paulo Funari

Protagonismo subalterno: nem tudo eram flores, entre os excluídos, em disputa por um lugar ao sol

Por Pedro Paulo A. Funari, Unicamp.


Uma plaquinha de chumbo, escrita dos dois lados, frente e verso, proveniente de Nomentum (AE 1901, 183), no Lácio, vizinho ao território Sabino, datada da primeira metade do primeiro século da nossa era permite discutir um aspecto nem sempre levado em conta: as disputas entre subalternos, assim como seu protagonismo, aspectos contraditórios e conflitivos, mas a serem levados em conta, ao tentar entender não só outras épocas, como a nossa. Como entender, ou explicar, comportamentos e pontos de vista em tudo conflitivos e mesmo opressores, em pessoas, hoje, das mais exploradas, excluídas e subalternas? Esse o ímpeto inicial desta reconsideração de uma inscrição antiga.


O texto é breve:


Lado A

MALCIO NICONES OCVLOS MANVS DICITOS BRACIAS VNCIS CAPILO CAPVT PEDES FEMVS VENTER NATIS VMILICVS PECTVS MAMILAS COLLVS BVCAS DENTES LABIAS ME<NT>VS OCLOS FRONTE SVPERCILILI SCAPLAS VMERUM NERVIAS OSSV MERILAS VENTER MENTVLA CRVS QVASTV LVUCRVM VALETVEDINES DEFICO IN AS TABELAS




Lado B

RVFA PVBLICA MANVS DETES OCLOS BRACIA VENTER MAMILA PEDTTVS OSV MCRILAS VENTER CRVS OS PEDES FRONTES VNCIS DICITOS VENTER VMLICVS CVNVS VLVAS/QVAS ILAE RVFAS PVBLICA DEICO IN AS TABELAS.


Texto reconstruído, na norma culta latina:


Lado A

Malchio Niconis oculos, manus, digitos, brachias, ungues, capillos, caput, pedes, femus, ventrem, nates, umbilicum, pectus, mamillas, collum, os, buccas, dentes, labias, mentum, oculos, frontem, supercilia, scapulas, umerum, nervia, ossum medulas, ventrem, mentulam, crus, quaestum, lucrum, valetudines defigo in has tabelas.


Labo B

Rufa publica manus, dentes, oculos, brachia, ventrem, mamillas, pectus, ossuum medulas, ventrem, crus, os, pedes, frontem, ungues, digitos, ventrem, umbilicum, cunnum, vulvam, iliae vel quas illae Rufae publicae defigo in has tabelas.


Tradução:


Lado A

Malchio (filho ou escravo) de Nico: seus olhos mãos, dedos, braços, unhas, cabelo, cabeça, pés, cintura, barriga, traseiro, umbigo, peito, mamas, pescoço, bochecha, dentes, lábios, queixo, olhos, fronte, supercílios, escápulas, ombro, músculos, medula, barriga, caralho, canela, foco e amaldiçoo nestas tabelas.


Lado B

Rufa, escrava pública: as mãos, dentes olhos, braços, barriga, mamilos, peito, tutano, intestinos, canela, boca, pés, fronte, unhas, dedos, útero, umbigo, boceta, vulva, lombos, de Rufa, a escrava pública, amaldiçoo nestas tabelas.


Já o uso do idioma permite concluir que se trata de pessoas de fora dos âmbitos dominantes. Essa imprecação parece ser mais ou menos contemporânea tanto dos grafites populares de Pompeia (antes de 79 d.C.), como do Satyricon de Petrônio (27-66 d.C.), com sua afetação popular, ou da linguagem rebuscada de Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.). A grafia demonstra pouco trato com as normas cultas correntes à época, como na omissão de letras que deveriam estar dobradas (mamilas por mamillas, por exemplo), ou de inteiras sílabas. Neste caso, scaplas por scapulas pode ser comparado a casos semelhantes nos grafites, como domna por domina (CIL IV 8364). Não há tampouco consistência nos desvios de grafia ou sintaxe, o que indica, de novo, pouca frequentação da leitura e da escrita em contextos oficiais ou mesmo educativos. O texto reflete a fala e a tentativa de escrever de acordo com a norma, com sucesso relativo apenas. Ainda em termos sintáticos, o uso do acusativo (objeto direto) é o que mais aproxima da escrita pompeiana e o afasta, até mesmo, da afetação popularesca do Satyricon. Assim, uenter por uentrem, umilicus por umbilicum, collus por collum, mentus por mentum, fronte por frontem, entre diversos outros exemplos. Quem colocou por escrito a maldição tinha alguma instrução, mas devia conseguir ler bem melhor do que escrever, algo muito comum entre pessoas subalternas em qualquer época, como mesmo hoje.


O conteúdo confirma o status das pessoas envolvidas: uma escrava pública, Rufa, e um provável escravo, Malchio, envolvido com os negócios do patrão também subalterno, Nico. Rufa (ruiva) é um nome de subalternizados (CIL IV 242: Rufa ita vale quare bene felas; AGP 2021), assim como Malchio (à letra, reizinho, de origem semita, מלך, algo como “graudinho”) e Nico, Sklavenmilieu, um ambiente servil, nas palavras de Solin (1989). Rufa foi interpretada como escrava pública reprodutora, ou seja, seus filhos seriam parte da escravaria da administração (familia publica). O cenário seria a maldição escrita por um homem ou mulher subalterna, em provável disputa amorosa com o casal amaldiçoado. Ambos, Malchio e Rufa podiam esperar pela alforria: ele, por acúmulo de recursos, ela por parir e gerar um escravo público. Haveria, ainda, a possibilidade da compra de Rufa e de um possível filho de ambos, caso Malchio fosse alforriado e possuísse recursos. A pessoa que escreveu a imprecação, também subalterna, ataca o corpo e a capacidade de enriquecer de Malchio e a capacidade reprodutiva de Rufa. Nesta hipotética reconstrução, o que estaria em jogo eram as oportunidades não só, nem talvez tanto, amorosas, como de promoção social. A autora anônima podia pretender ser ela a beneficiária dos recursos de Malchio, em detrimento de Rufa ou mesmo ser um homem de recursos, escravo ou liberto, interessado em Rufa, por motivos como sua beleza, para ser ele a comprá-la. Não se pode saber, são especulações mais ou menos bem fundamentadas e possíveis, mas, de todo modo, importa ressaltar as rixas entre subalternos, em particular se estiver em jogo as poucas possibilidades de promoção social. A competição nem sempre é bonita ou alegre, para usar os termos do filósofo Bento Espinosa (Ética 4, 37, 1), mas sim triste e rancorosa:


Cupiditatem deinde qua homo qui ex ductu rationis vivit, tenetur ut reliquos sibi amicitia jungat, honestatem voco et id honestum quod homines qui ex ductu rationis vivunt, laudant etid contra turpe quod conciliandæ amicitiæ repugnant. (Espinosa, Ethica, IV, 37, 1).


"Já o desejo que leva o homem que vive sob a condução da razão a unir-se aos outros pela amizade chamo de lealdade (honestas, honestidade). E chamo de leal (honesto) aquilo que os homens que vivem sob a condução da razão louvam, e de desleal aquilo que contraria o vínculo da amizade". (Tradução de Tomaz Tadeu).


Se a alegria leva à convivência, a tristeza induz ao ódio e desejo de destruição. Lembrança mais atual do nunca.


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