Por Pedro Paulo A. Funari, Unicamp.
A diversidade e a diferença são conceitos de uso e disputa corrente, nos dias de hoje. A diversidade de comportamentos, aparência, cultura, valores, ideias é uma noção recente, difundida a partir das lutas por direitos sociais, de gênero, étnicos, religiosos, entre outros, a partir dos anos 1970 e difundidos mesmo desde a década seguinte. Reações estiveram presentes desde o início, pelo que legislação em prol da diversidade foi tardia, como na União Europeia (CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA, 2000). O Brasil é signatário de importantes atos normativos da Unesco, como a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2002) e a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005), ratificada pelo Brasil em 2006. Em todos os casos, além de tardia, a defesa da diversidade vem acompanhada de contestações, já que a aceitação do diferente é sempre um desafio.
O estudo da História e da Antiguidade, em particular, demorou a incluir não só o termo diversidade, como noções associadas, relativas à variedade de comportamentos, pontos de vista e tudo o mais. Os subalternos também foram beneficiados dessa maior atenção recente à variedade e às contradições. Os excluídos, explorados, discriminados, como quer que o definamos tiveram reações as mais diferentes, frente à sua situação. Os poemas funerários em tumbas oferecem algumas pistas. Essas inscrições podiam ser encomendadas pelo falecido em vida ou levadas a cabo por outros após e sem qualquer relação direta com o morto, mas, mesmo assim, revelam aspectos dessa diversidade e contradições. Alguns exemplos dessa variedade ajudam a conhecer um pouco dessas questões. Usemos como exemplo disso duas inscrições provenientes de Roma:
(Obita) Manlia T(iti) l(iberta) Gnome / haec est quae vix{s}it semper / natura proba clientes habui / multos locum hoc unum opti/nui mihi itaque quoad aetatem volui / exsegi meam nemine unquam / debui vix{s}i quom fide / ossa dedi terrae corpus Volchano dedi/die<g=C>o ut suprema mortis man/data edidi. (176 CLE 67 = CIL 6, 21975, CIL I² 1218 ).
"Mânlia Gnome, liberta falecida de Tito. Aqui jaz uma mulher que viveu sempre de maneira proba. Tive muitos clientes, escolhi este lugar e, assim, vivi quanto quis, nunca devi nada a ninguém, vivi cumpridora da minha palavra. Confiei meus ossos à terra e meu corpo a Vulcano, eu cumpri as demandas supremas da morte".
Calpurnia Anthis fecit / dextera fama mihi fuit et fortuna patrona / magnifici coniunx Caesaris illa dei / qua bene tutus eram caris nec vilis amicis / quis etiam mecum plurima cura fuit / Anthis causa meae vitae quae cara sepulcro / condidit ossa suo nominor Ikadium. (184 CLE 964 = CIL 6, 14211).
"Calpúrnia Ântis fez. Fui agraciado com minha reputação, fortuna e patroa, esposa do magnífico divino César. Por ela, fui sempre bem tratado, nem desatento de meus queridos amigos, que se importavam muito comigo. Ântis, a quem devo a minha vida, enterrou meus caros ossos no seu sepulcro. Chamo-me Icádio".
Essas duas inscrições foram escolhidas, em particular, por tratarem de mulheres, de modo que se pode comentar tanto a subordinação social como de gênero, assim como a variedade de situações. Ambas epígrafes contêm versos encomendados, mas que se referem a vidas concretas e demonstram sensações muito particulares. Pode supor-se que alguém compôs o poema, a partir do que queria que constasse quem havia encomendado o epitáfio. Talvez a mais antiga, do primeiro século a.C (depois de 42 a.C.), foi encomendada pela liberta Ântis (Flor) para seu filho Icádio (Eikãdion, “do vigésimo dia”). Calpúrnia (n. 75 a.C.), viúva do divino e magnífico Caio Júlio César (110-44 a.C.), aparece como patrona do falecido e de sua mãe Ântis. Icádio é apresentado como beneficiado pela Fortuna (Destino e recursos, ambos sentidos do termo latino), com muitos amigos, aos quais trata de maneira generosa (“não vil”, o que talvez se refira à esfera monetária). A trajetória do liberto Icádio, em posição de destaque com uma rede de amigos, resultou de uma mulher de elite, Calpúrnia, e da sua própria mãe, Ântis, também em boa posição social, como atesta a sepultura e a inscrição.
A outra é ainda mais enigmática, talvez datada também de meados do primeiro século a.C. Diversos estudiosos, desde quando descoberta no século XIX, interpretaram-na a partir dos lugares comuns de sua época: coleção de versos desconexos ou frases mentirosas e inventadas. Com os olhos de hoje, ao contrário, outros tantos vêem nela a atestação de uma mulher vinda da escravidão que mal menciona o seu ex-dono (Tito), que se apresenta enfática na primeira pessoa (eco = ego), poderosa, senhora de sua posição social, com rede de clientela própria, em vocabulário de duplo sentido (locus unus = lugar único da sepultura = posição social única), senhora de si (itaque quoad aetatem volui = assim, vivi o quanto quis).
Se retornarmos à diversidade, acenada no início, verificaremos mulheres, por definição excluídas em diversos aspectos, em posição de patrocínio de outras pessoas, senhoras de suas vidas e decisões. Suas relações de subordinação não impediram sua autonomia, em situações muito diferentes entre si, da esposa de Júlio César a antigas escravas, com certeza não sem conflitos de todo tipo. Mas, se não estivermos abertos a essa diversidade, veremos apenas nossos próprios valores e preconceitos. A diferença no passado pode servir para atuar por um futuro também diferente.
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